Na tarde de 1º de abril de 1964, por uma dessas ironias da história, o ainda presidente João Goulart se despedia dos deputados Tancredo Neves e Almino Affonso – fiéis aliados – na Granja do Torto, à espera do vôo que o conduziria ao Rio Grande do Sul, onde ainda mantinha o apoio militar. Lá, convenceu-se que a resistência armada de nada adiantaria, pois as tropas sublevadas eram muito maiores e a armada americana já estava próxima de nossas costas. Para evitar um banho de sangue, partiu, então, para o exílio no Uruguai, onde permaneceria por muitos anos até a morte na Argentina. Hoje, suspeita-se, por envenenamento criminoso. Tancredo lembrou a necessidade do presidente se dirigir ao povo naquele momento trágico e solitário. Com a concordância do presidente, Tancredo começou a ditar um manifesto à nação, que Almino se apressou a datilografar. A certa altura, irônico e provocando as gargalhadas de todos, Almino notou a semelhança entre aquele texto e a carta-testamento de Getúlio, exatos dez anos antes, insinuando que o próprio Tancredo teria sido seu autor! Deputado federal pelo PTB do Amazonas e nomeado ministro do trabalho por Jango um ano antes do golpe, Almino, agora aos 85 anos, decidiu nos contar tudo nas quase 700 páginas de 1964 na visão do ministro do trabalho de João Goulart. A ironia de Almino naquela tarde de 1º de abril não poderia ser mais oportuna - pois o dia da mentira iria denunciar perenemente a farsa golpista. Ela escancara a solidão que selou para sempre a história de ambos – Getúlio e Jango, seu herdeiro político - cercados de todos os lados pelas mesmas forças conservadoras, apoiados apenas pelo povo, que nada pôde dizer nem fazer, em ambos os casos. A obra, portanto, revela que a farsa revolucionária de 1964 começa pelo nome: 31 de março marca apenas o início de uma quartelada em Minas Gerais que visava pressionar o presidente a abandonar sua política de governo. Com sua recusa, o golpe se consuma apenas com as traições do comandante do II Exército, general Amaury Kruel, no dia seguinte, e do senador Auro de Moura Andrade, que declara vaga a Presidência da República, sem que o presidente eleito houvesse renunciado ou abandonado o país, na madrugada de 2 de abril. Todas as manobras desses dois dias cruciais para a história do Brasil são descritas com detalhes que só a intimidade do autor com o poder poderia proporcionar. O prefácio de Fernando Morais – jornalista e autor de biografias famosas como Olga e Chatô, dentre outras – aponta que o projeto do livro é antigo: em agosto de 1976, ao retornar ao Brasil após um longo e conturbado exílio em diversos países, Almino lhe revelou que já havia começado a juntar os “documentos e fiapos de memória sobre o golpe militar” que agora foram, finalmente, publicados. “Trata-se, antes de tudo, de uma obra honesta”, define Morais. 1964 na visão do ministro do trabalho de João Goulart tem o mérito de descrever, uma por uma, todas as causas que levaram ao golpe militar de estado naquele ano. Ao recuar no tempo até a era Vargas, permite-nos perceber também as diferenças. Se a pauta política econômica brasileira pouco mudara nesse ínterim – inflação, dívida externa, salários, sindicatos, reforma agrária – a guerra fria havia recrudescido e nos incluído na geopolítica mundial. A retórica do anticomunismo cresceu e reduziu a possibilidade de uma política externa independente como pretendia Jango. As pressões pelo atendimento de reivindicações de empresas americanas aumentaram. As negociações da dívida externa tornaram-se instrumentos para a desestabilização política do governo, em aliança explícita com seus adversários nacionais. Mais do que um documento histórico, mais do que um perfil político de Jango e de muitos outros personagens da política brasileira – ministros, parlamentares, militares, sindicalistas, empresários – a obra de Almino Affonso que a Imprensa Oficial do Estado e a Fundap estão lançando, é o depoimento verdadeiro de um homem político da maior envergadura – no tempo e no espaço – equivalente a um tratado cujas lições são indispensáveis se quisermos compreender o país em que vivemos hoje e sempre.