A história da modernidade capitalista foi uma história de "outros lugares": a história de um centro que se serviu dos corpos e dos recursos naturais da periferia como combustível para sustentar a crença no progresso e no futuro, e uma enorme franja periférica que enxergava suas próprias contradições pelo prisma do desenvolvimento desse centro avançado na expectativa de que o trabalho, as leis e a democracia nos retirariam da condição de dependência e atraso. A famosa definição de Deus, proposta por Nicolau de Cusa em 1440, descreve bem esse jogo de espelhos: "a máquina do mundo tem, por assim dizer, seu centro em todos os lugares e sua circunferência em lugar algum" o centro vê outro mundo, a periferia vê o outro mundo do centro, e as margens permanecem invisíveis. O que a investigação de Canettieri revela, no entanto, é que atravessamos hoje uma transformação social profunda, uma verdadeira reconfiguração na "máquina do mundo": as formações sociais híbridas, com sua mistura de atraso e avanço, de lei e não-lei, e seus múltiplos regimes normativos incompatíveis, se expandem pelo globo, brotam nas cidades partidas do centro capitalista se mostram, em suma, a forma atual do capitalismo global, e não sua exceção passageira. Torna-se cada vez mais apropriado, nesse contexto histórico, inverter a definição de Cusa e reconhecer que o capitalismo tem sua periferia em todos os lugares, e o centro em lugar algum.(...) Quem não se atenta para os efeitos subjetivos que acompanham a generalização periférica poderia considerar a intervenção de Canettieri excessivamente "pessimista": afinal, o que ganhamos com o desespero, com um marxismo desencantado de sua própria história política Acontece que a condição periférica nos convoca a uma nova tarefa: antecipar a realidade catastrófica, transformando o desmantelamento das nossas idealizações em uma capacidade política ? em uma ação, e não mera casualidade. Há uma coragem difícil ? que encontramos em todas as páginas de A Condição Periférica ? em reconhecer que não se trata mais de permanecer do lado de cá de uma fronteira, mas de decidir se daremos um passo à frente ou se seremos arrastados para o outro lado. Gabriel Tupinambá