Este é um texto sobre a Justiça brasileira e também sobre afetos, sujeições, acessos, dispositivos do
discurso, leis, decisões e máquinas. Um inspirador e
original exemplo do que Bruno Latour chamou de
Antropologia simétrica. Sara Munhoz compôs uma
etnograa primorosa e profunda que mostra a trajetória
do desenvolvimento dos sistemas algorítmicos
indispensáveis para a organização judiciária. Sua
descrição nos mostra como os mediadores sociotécnicos
acabam colonizando o sistema de justiça não só pelas
disciplinas, como já havia alertado Michel Foucault, mas
pelas máquinas digitais cada vez mais autômatas e suas
complexas infraestruturas.
A agilidade e a urgência da intensa digitalização e
conversão do conjunto de uxos interativos do Judiciário
em dados não parecem ser evitáveis, muito menos
socialmente pretendidos. Com delicadeza, Sara Munhoz
nos conduziu pelos caminhos de uma servidão maquínica
que denirá o regime do visível que é constitutivo da
Justiça. O que não for acessado pelo sistema, nem
visualizado nas telas e interfaces dos dispositivos digitais
praticamente poderá ser declarado inexistente. O mais
curioso é que a performatividade algorítmica vai se
impondo e a vetorialização dos enunciados jurídicos se
tornam o meio de armazenamento e acesso a partir das
redes neurais articiais. Assim, as próprias decisões do
Judiciário só se tornam acessíveis e visíveis até para as
ministras e ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
por meio das mediações sociotécnicas que Sara Munhoz
acompanhou e aqui nos apresenta. Uma leitura
fundamental.
— Sérgio Amadeu da Silveira (UFABC)
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A Paixão do Acesso é um livro
dedicado à relação cada vez mais
imbricada entre enunciação do
direito, ferramentas digitais e apelos
democráticos. Trata-se de uma
etnografia sobre a feitura da
jurisprudência de um dos tribunais
mais importantes do país e sobre as
ambições perenes de que ela se
consolide como uma interpretação
suficientemente persuasiva a respeito
do que diz a lei em todo o território
nacional. Em um primeiro momento,
são descritas as barreiras processuais
e administrativas que permitem ao
STJ se afirmar como um Tribunal a
um só tempo superior e cidadão ,
afastando de seu campo de
visualização todos os excessos e
vicissitudes do mundo dos fatos para
lidar exclusivamente com teses
jurídicas. A seguir, a etnografia se
desloca para longe dos gabinetes e
examina como analistas humanos e
aplicativos computacionais se
encarregam de cotejar e
compartimentalizar as decisões
ministeriais, gerar hyperlinks,
confeccionar Espelhos e Produtos que
só então podem ser disponibilizados
como a jurisprudência do STJ aos
usuários de sua ferramenta de busca
online. O livro discute como a
garantia de uma justiça segura e
democrática está cada vez mais
relacionada ao acesso digitalmente
mediado a volumosos conjuntos de
dados em constante atualização. Ao
privilegiar os circuitos burocráticos e
as sínteses digitais ulteriores aos
julgamentos, A Paixão do Acesso
expande o alcance da bibliografia
que se dedica à fabricação técnica
do direito, incluindo agora sua
vinculação profunda com a
informática, sem a qual os tribunais
já não podem mais julgar.