"Marie, a sua mãe e uma criadagem que incluía Émile, Vincent e Adèle, partiram num expresso do Oriente que ia parando em capitais da Europa até chegar dez dias depois a Petersburgo, onde a alta sociedade falava francês atraiçoando a língua russa de futuros Tolstóis e Dostoiévskis, descendo-a até ao contacto com criados ou a acidentais falas com gente do povo.Imaginem-se estas convidadas numa sucessão de castelos, bailes e reverências; destinatárias de convites que não lhes deixavam tempo para sentir a verdadeira Rússia, exterior a dourados salões. Marie encantou-se com o rasto deixado pela imperatriz Catarina nos cenários que ia percorrendo e que insistiam, apesar de um século já passado, em não apagar o seu poderoso fantasma.Salomé Chalandon escreverá: "Marie partilha com a imperatriz um ponto comum: uma ingénua candura que oculta por vezes o raciocínio de uma aguda inteligência. E muitas outras coisas quando começar, anos mais tarde, a escrever a sua biografia e descobrir que atrás de A Vida Apaixonada da Grande Catarina se perfila num ponto e noutro a vida da própria Marie."[…]Desde meados do século XIX eram conhecidas as Mémoires de l’Impératrice Catherine II par elle-même, a principal fonte da biografia da Princesa Lucien Murat. Este texto, sem grande valor literário, deu à princesa o direito a pormenores que poderiam, na descrição de cenários e sentimentos, tomar-se por liberdades de um biógrafo-romancista. Embora haja nesta obra elementos exteriores às confissões íntimas da imperatriz, poderá dizer-se que é na sua maior parte fiel à visão que a própria biografada dá a respeito do seu percurso amoroso e do seu triunfo político; e que se fez seu principal encanto a passagem a autêntica literatura de um texto escrito em francês por uma imperatriz russa sem vocação para as letras.
Aníbal Fernandes