O poema acádio que aqui se apresenta em edição bilíngue, conhecido como Descida de Ishtar ao mundo dos mortos, foi conservado em duas tabuinhas de argila, escritas em cuneiforme, pertencentes à biblioteca do rei assírio Assurbanípal (685-627 a. C.). Tendo sido composto no início do primeiro milênio antes de nossa era, nele confluem tradições semitas e sumérias que remontam ao terceiro milênio, envolvendo a viagem da deusa Ishtar (em sumério, Inana) ao mundo subterrâneo dos mortos - o Kurnugu - e sua surpreendente volta dessa "terra sem retorno". A relação com a produção mais antiga não supõe demérito, pois no processo de recontar velhas histórias novos sentidos sempre emergem. Sendo Ishtar a deusa ligada à sexualidade, sua descida tem consequências de duas ordens. De um lado, implica o fim da libido sexual que impede a humanidade e os outros animais de sucumbir ao aniquilamento enquanto espécie. De outro, já que à descida da deusa segue seu retorno, a vida prevalece e relativiza-se a absoluta separação entre vivos e mortos, pela instituição de festas a estes dedicadas. O que se celebra, portanto, é a sucessão das gerações tanto em termos dos corpos, quanto da memória. A tradução pioneira em língua portuguesa, feita diretamente do acádio por Jacyntho Lins Brandão, é acompanhada de estudo sobre aspectos linguísticos, literários, mitológicos e culturais do poema. Assim, o leitor poderá ter acesso a uma das obras mais refinadas da civilização mesopotâmica antiga, em que se plasmaram, ao longo de milênios, muitas de nossas crenças e de nosso imaginário. Fica, portanto, o convite: uma viagem poética às origens, que dizem muito do que somos, e a experiência de um retorno que, se espera, nos faça mais humanos.