A presença holandesa no Nordeste brasileiro ao longo da primeira metade do século XVII deixou, sem dúvida, uma série de rastros culturais e materiais no modo de vida dos habitantes da região. Todavia, mais salientes do que tais rastros são os mitos que se construíram por aqui acerca do que veio a ser a vida no tal Brasil Holandês (1624-1654), a única experiência consistente de colonização protestante numa colônia toda ela tomada pelo catolicismo ibérico. Um dos mitos mais populares diz respeito à suposta racionalidade e competência da administração batava nos trópicos, administração que gerou uma sociedade próspera e progressista, sobretudo no período do célebre conde Maurício de Nassau. Lamenta-se, por vezes, que tal “espírito” não tenha perdurado e se espalhado pelo restante da colônia, que permaneceu assombrada pelo catolicismo obscurantista e retrógrado disseminado pelos portugueses. Bebidas e bebedores no Brasil Holandês, de uma maneira despretensiosa, lança umas tantas dúvidas sobre tão persistente lugar comum. Tomando como objeto o hábito de beber no Norte do Brasil durante o domínio holandês, Gabriel Gurian mostra que, no tocante ao consumo de álcool e aos impactos de tal consumo sobre o cotidiano das gentes daquela região, os batavos não primavam pelo comedimento, tampouco pela administração equilibrada e racional dos meios materiais que tinham ao seu dispor. Ao contrário, o que se vê neste panorama do consumo de bebidas derivativas no Brasil são, de um lado, batavos ébrios, quase sempre atrás de um trago de qualquer coisa que pudesse amenizar as agruras dos trópicos e da vida numa região carente de tudo, inclusive de uma boa administração; de outro, portugueses austeros e sóbrios, resignados talvez com as durezas de uma terra que, aos seus olhos, malgrado a inoportuna mas circunstancial presença calvinista, continuava a ser uma dádiva do Deus católico ao rei de Portugal. Jean Marcel Carvalho França Professor Titular de História do Brasil Unesp, campus Franca