A emergência e a disseminação de plataformas digitais em diversas esferas de nossas vidas nos últimos anos produziram uma espécie de tecnoeuforia na sociedade. À primeira vista, poderia parecer bom para todo mundo. Uma tecnologia que conecta consumidores e trabalhadores, oferecendo um serviço mais conveniente para os primeiros e vantagens também para os segundos. Em vez de ter que procurar um táxi vago na rua, basta indicar a necessidade em um aplicativo e o motorista vem até você. Em vez de ter que entrar em uma fila de um ponto de táxi, basta ao motorista esperar as corridas chegarem por notificações no celular. Vantagens semelhantes poderiam ser listadas em relação aos demais tipos de uberização do trabalho e do consumo.
A essa altura, no entanto, já estamos escaldados de que nada é o que parece na opacidade ideológica do capitalismo de plataforma. Por trás da modernidade reluzente dos apps, o que existe é mais precarização das relações de trabalho, em inúmeras dimensões: jornadas de trabalho sem limites, renda baixa e incerta, acidentes constantes, gerenciamento algorítmico indecifrável que é usado para dividir e controlar a classe trabalhadora. Não se trata, é claro, de querer girar para trás os ponteiros do relógio: não há nada mais distante da perspectiva deste dossiê do que considerar o mundo dos motoboys terceirizados e dos alvarás de táxi concentrados nas mãos de grandes empresários como um paraíso perdido. A luta por uma sociedade emancipada não se opõe aos avanços tecnológicos, mas cobra deles suas promessas não cumpridas.
O objetivo deste dossiê é trazer para as leitoras e os leitores da Rosa o debate sobre a uberização em sentido amplo, estimulando a discussão sobre essa fronteira da exploração do trabalho e das formas de resistência da classe trabalhadora. Para tanto, contamos com quatro artigos, escritos por pesquisadoras e pesquisadores brasileiros que têm estudado o assunto a partir de ângulos que se complementam. Contamos também com a tradução de um artigo de Veena Dubal, professora da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, e militante na luta por direitos para os trabalhadores uberizados. Por fim, mas não menos importante, publicamos duas entrevistas com lideranças de movimentos organizados de entregadores: Gil, do Sindimoto-SP, e Galo, dos Entregadores Antifascistas.