E quem era Milena? Na representação social do mundo, ela era a descendente de uma família tradicional da Checoslováquia, que ali constitui o patriciado. Depois da batalha de Weisse Berg um de seus antepassados, ardente patriota, foi executado pelos Habsburgos, e seu nome figura na grande placa de mármore junto à velha Municipalidade de Praga. Em suas veias, pois, corria o sangue ardente dos seus avoengos, inflamados do amor à Pátria e trilhando com galhardia os caminhos da aventura. Ela contava, na época em que conheceu Kafka, vinte e quatro anos bem vividos, sofregamente aproveitados. A sua situação era semelhante à de Kafka. Vivera os seus dias mais felizes em Praga, quando desperdiçou tudo o que possuía de uma maneira incrível: dinheiro e vida, paixões e sentimentos, os seus e aqueles que ela sabia despertar e que, por uma deformação particular de seu caráter quase egoísta, passava a considerar seus próprios sentimentos, propriedade exclusiva de sua alma. Assim, nos anos confusos que se sucederam à guerra, quando a Europa lutava para emergir do caos, e a flor da mocidade europeia vinha procurar nos cafés literários o bálsamo para as suas recentes e dolorosas cicatrizes, Milena sofria o seu drama particular, íntimo, e não encontrava naquele ambiente conturbado o lenitivo desejado. Como Kafka, Milena não era feliz em seus amores. Várias tentativas fizera para encontrar a alma gêmea, aquela que se identificasse com a sua. Kafka também fracassara quando pretendera ligar o seu destino ao de outra criatura.