Não é fácil fazer a roda gigante e pesada de um romance girar. O escritor é sujeito que trabalha sozinho, precisa buscar o barro e despejar toda a massa disforme no papel, precisa ir dando as primeiras formas toscas até, enfim, chegar no trabalho do polimento. É trabalho bruto e fino. E o que André Volpato consegue com seu romance de estreia, cidademanequim, é de uma habilidade espantosa em todas as etapas do processo. Mantém a estrutura geral do romance, fazendo conexões entre as muitas vozes que o habitam, sem nunca descuidar da limpeza das unidades mínimas, a frase, a palavra pensada, a pontuação.
Expor com tanta clareza a confusão humana é capacidade das mais raras. Nesse romance exemplar do que Mikhail Bakhtin chamaria de polifônico, a palavra inventiva jamais será sinônimo de malabarismo exibicionista. É a forma que compõe conteúdo e, longe de ser mera embalagem, tece sentidos. Nada a ver com pedantismos de quem descobriu ontem a riqueza da língua.
Com um narrador cheio de tiques e toques, que costura e descostura os personagens de si mesmos e dos outros, cidademanequim arranha a crosta dura da casca que as personas ostentam, até escavar e encontrar sangue, até encontrar um sujeito de desejos e desânimos escondido ali, no pulsar das pulsões. É possível falar em personagens despersonados? X, M, S, R compõem um alfabeto de despersonalização que cai à medida em que, mergulhando nas páginas, furamos rótulos e aprofundamos nosso conhecimento das vísceras. Do que é feito um homem, do que é feita uma mulher?, eis a pergunta tão evidente quanto irrespondível.
Opera prima, literalmente, é obra primeira. Mas é também obra fundamental. Não tenho qualquer medo ou pudor de afirmar: cidademanequim, de André Volpato, é sua primeira obra e já é uma obra-prima.
Cezar Tridapalli