Antes de tudo, é interessante reproduzir, no presente prefácio, o pensamento do teólogo e filósofo Leonardo Boff expresso em “O ser humano na era das grandes transformações” (A Gazeta, 25 de maio de 2015) – um dos seus últimos artigos a que tivemos acesso. Falando do ser humano na era das grandes transformações, Boff considera duas principais mudanças ocorridas no mundo: a passagem da economia do mercado para a economia da sociedade do mercado, iniciada em 1834 com a consolidação da revolução industrial, e a conscientização da sociedade sobre os males que assolam o planeta Terra, aliados ao modelo de desenvolvimento predominante. Com relação à primeira mudança, constata-se que a “mercantilização penetrou em todos os setores da sociedade: a saúde, a educação, o esporte, o mundo das artes e do entretenimento e até nos grupos das importantes religiões e das igrejas, com seus programas de TV e de rádio.” A predominância da economia na sociedade acabou favorecendo o crescimento da injustiça social. No mesmo momento, o modelo de desenvolvimento dominante vem buscando constantemente o crescimento econômico e acabou ultrapassando os limites da suportabilidade da natureza e da terra, em detrimento do desenvolvimento sustentável. Como bem-relatado na presente coletânea, a estabilidade econômica, no Brasil, se manteve em detrimento das demandas dos movimentos populares, dificultando a realização dos direitos sociais. A segurança alimentar e nutricional (SAN), da forma como é conceituada no Brasil, incorpora exatamente essa visão de Leonardo Boff. Aliás, as mudanças que vêm ocorrendo no mundo acabam influenciando os hábitos alimentares e o comportamento humano de um modo geral. Os reflexos dessas transformações na SAN ou na Insegurança Alimentar e Nutricional (Isan) são bem evidentes. Assim sendo, o olhar multidimensional sobre a SAN se impõe para quem ambiciona contribuir na manutenção da qualidade de vida e promover o direito humano à alimentação adequada (DHAA) na sociedade. Nesse sentido os autores da coletânea acertam a temática de interesse, que, sem dúvida nenhuma, é de grande interesse para todos os que se dedicam à promoção do DHAA.O conteúdo da coletânea incorpora várias dimensões da SAN. Entre outros, os autores descrevem o desenvolvimento histórico da bem-sucedida experiência brasileira e analisam o impacto das políticas públicas de interesse numa perspectiva multidimensional. A identificação de avanços e dos obstáculos que vêm sendo enfrentados subsidiará qualquer iniciativa que busca adequar determinados procedimentos para que a continuidade do processo de construção do Sistema Nacional de SAN não seja interrompida e/ou avance com as menores dificuldades possíveis. Serve também para alertar os muitos países que buscam inspiração na experiência brasileira. Entre outros resultados dos esforços atribuídos à Política Brasileira de SAN, destaca-se o fato de o país ter saído do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação [FAO], o que se traduz por existência do índice de desnutrição cada vez mais baixo e tendência declinante da taxa de mortalidade na infância. Apesar dos incontestáveis avanços, o modelo de desenvolvimento é ainda objeto de críticas. Os mesmos questionamentos que Josué de Castro formulou desde a década de 1940 persistem na atualidade. A monocultura, que vem sendo desenvolvida via uso abusivo e indiscriminado de agrotóxicos, e a tendência crescente da disponibilidade de alimentos transgênicos no mercado ainda geram preocupação a tal ponto que o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Fbssan) e o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea Nacional) elegeram como lema da 5a Conferência Nacional de SAN, olhando para essas preocupações: “Comida de verdade no campo e na cidade: por direitos e soberania alimentar.” A publicidade antiética dos alimentos vem contribuindo para mudança inadequada dos hábitos alimentares. Arroz com feijão, que mais identifica os brasileiros e brasileiras, vem sendo substituído por alimentos ultraprocessados de tal forma que, mesmo nos grupos populacionais ainda em situação de vulnerabilidade alimentar, a prevalência da obesidade e de outras doenças crônicas não transmissíveis já alcançou um patamar assustador, impactando negativamente a qualidade de vida da população.Alergias e intolerâncias alimentares, junto com a poluição ambiental, já preocupam a sociedade. Entre os povos e comunidades tradicionais, a terra e o território, a preservação da agrobiodiversidade, das nascentes e dos rios continuam sendo sérios desafios. Cabe salientar que a insegurança alimentar e nutricional, nos seus diferentes graus, particularmente nos grupos populacionais específicos, ainda se constitua importante problema. Com propriedade, os autores salientam o papel da educação alimentar e nutricional enquanto ferramenta do DHAA. Ações educativas são objeto de reflexão enquanto oportunidades de debates. A mobilização da