Não deves abrir as gavetas/ fechadas, aconselha o poema que abre este livro, porque dentro delas encontraremos "mentiras" e "a imperfeição/ do mundo". A escrita de Pedro Mexia move-se sempre em direção ao fundo sedutor, enigmático, surpreendente e inútil das muitas gavetas que se abrem e se fecham, involuntariamente ou sob a força do desejo de rever, reviver, inventar. Mexia parece nos dizer todo o tempo que poesia é memória. E se afirma que "recordar já é quase/ um erro", observa, por outro lado, que "só sabendo isso os erros/ nos podem salvar." A consciência, de certo modo, suspende a falha. Ou ainda, se poesia é memória, e sua matéria é também a mentira, o erro, o engano e a ilusão, é certo que seu alto grau de consciência faz dela a mais alta sabedoria. Os versos de "Contratempo" fazem ver essa lucidez — na linguagem e da linguagem. No poema "Save", lemos que "a própria memória/ é uma mitologia". Mas não há dúvida de que a poesia — este livro nos prova isso — suspende as mitologias, mistificações e aut enganos, porque susta os julgamentos e faz do erro seu acerto. A poesia de Pedro Mexia transita quase sem espanto, desassombrada, por entre ruínas, lúcida e melancólica. Os versos fazem-se, sobretudo, com o diapasão da simplicidade. Os mistérios surgem então como resquícios, restos que emergem da lembrança, testemunhos silenciosos e confusos: casas, automóveis, livros, espingardas, fotografias, animais, canções. Eis uma escrita voltada para as coisas materiais — acumuladas no lixo ou num ferro velho —, mas que no seu apego à matéria e ao corpo não se recusa ao estranhamento, à surpresa, à dúvida. Por fim, mesmo este livro resulta da memória de outros livros — sete, para ser mais preciso — dos quais o autor selecionou os poemas com que se apresenta ao público brasileiro. A poesia portuguesa, mais uma vez, nos dá a chave certa. —Eucanaã Ferraz