O leitor de Tati Bernardi, que nem sempre está entre os milhões que os roteiros de suas comédias românticas amalucadas arrastam às telas, não demora a sentir a do inesperado nesta escritora impetuosa e original. À primeira vista estão ali os clichês da loquacidade histérica, a coragem implícita na condição exposta da mulher, “aberta a fungos e promessas”. Autocompaixão e autocrítica se alternam em ritmo estonteante, que persegue o pulso cômico do exagero para exibir o reverso dos gêneros (o sexual e o da escrita feminista, ou pós-feminista) na forma de uma escatologia inédita, feita de cistites e constipações. Mas esta autora não é misógina, porque resvala antes na misantropia em geral, mostrando se adepta da mais drástica intensidade narrativa, como uma roteirista de telenovelas que fosse em segredo discípula, sei lá, de Kierkegaard. Raro ver, ainda mais na crônica, gênero que quase exige o diletantismo hesitante e a falta de assunto, tamanha pressa de dizer tanta coisa ardente sob as aparências do que o poeta popular chamou de “guizos falsos da alegria”. Neste volume autobiográfico, porém, é como se a tampa da cabeça de Tati Bernardi fosse desatarraxada para que os fãs bisbilhotassem à vontade lá dentro. Revela-se que a vertigem alucinatória de sua prosa é produto tanto de fibrilação estilística quanto do estado natural do psiquismo da autora. Seu avô já tinha “a coisa”, como sua avó dizia. Medo de ir, ela resume — ataques de pânico, fobia a avião, a patas de barata, a vomitar, a cheiros, festa, a lugar fechado, a Ano-Novo. Sentir-se uma criança em carne viva. E então a maravilha do primeiro comprimido de Rivotril, “chuva fina que caiu sobre uma horta de manjericão fresco”. Perto do desfecho do livro, quando já não há antidepressivo nem terapeuta que dê conta, a literatura aparece como medicina das almas, capaz de remediar o escritor autêntico e o leitor sincero. Pois, numa constatação inquietante mas tranquilizadora, “ninguém está bem”. Otavio Frias Filho