Se a trama especulativa em jogo neste ensaio de Deborah Tenenbaum enlaça com rigor inconsciente, gozo e escrita, termos que se tornaram incontornáveis na tradição lacaniana de reflexão sobre a língua – e, mais especialmente, sobre alíngua – , ela envolve também, de maneira singular, uma experiência que, embora tenha sido basilar para a psicanálise desde Freud, nem sempre foi posta no primeiro plano das articulações conceituais do campo: a experiência da tradução. Afinal, o que seria, em qualquer circunstância, “desdobrar a língua”, senão traduzir, senão fazê-la continuar a falar para dizer – em outras ou mais palavras – aquilo que se pretende que ela diga – e que, em última instância, ela nunca dá a ler ou a ouvir inequivocamente? Nessa perspectiva ampla, toda fala, ou escrita – do mesmo modo que o sonho –, já é desde sempre tradução e não pode remeter a outra coisa que não a um original ainda por vir, e que não cessa de intraduzir-se, como diriam quase ao mesmo tempo – cada em sua língua – Jacques Lacan e Augusto de Campos, significando, assim, que inevitavelmente se introduz algo no campo do sentido de um original quando se busca traduzi-lo.Dos exemplos intraduzíveis de Signorelli por Freud ou de Wolfson por Deleuze às obras de Carroll, Kafka ou Beckett, da escrita na língua materna “adquirida” de Aharon Appelfeld ou na “língua dos assassinos” de Paul Celan ao pretuguês brasileiro definido por Lélia Gonzalez e praticado por Carolina de Jesus, é na reflexão sobre práticas mais ou menos concretas do trabalho entre línguas, na fronteira e no trânsito entre elas, que Deborah Tenenbaum se desdobra, oferecendo-nos uma perspectiva inovadora e produtiva do pensamento d’alíngua.
[Marcelo Jacques de Moraes]