É possível falar de despotismos democráticos, i.e., de atribuir o adjetivo “democráticos”, no plural, ao(s) despotismo(s)? Pode haver vários tipos de despotismo, em simultâneo, num horizonte democrático? Este livro nasce da intuição de que a resposta a esta questão é positiva, porém, como qualquer trabalho que exige a atividade de pensar, a hipótese inicial precisou ser testada, confirmada ou abandonada.
A partir de um diálogo direto com vários autores - Tocqueville, Schmitt, Arendt, Foucault, entre outros - ofereço, num primeiro mumento, uma reconstrução do imaginário coletivo (democrático e liberal) que ainda nos define, para, num segundo momento, construir um diagnóstico do presente. Apesar das dificuldades e aporias trazidas pela democracia liberal, é preciso ganhar consciência de que esta tem em si sementes anti-democráticas, anti-liberais e até totalitárias. Os seres humanos oscilam entre a busca de segurança e certeza, trazida pelo estabelecimento e manutenção da ordem, e por outro lado, o desejo de uma liberdade que lhes permita crer, estar, ser e viver com os outros. O processo de formação de um juízo - moral e político - não é automático nem evidente. Julgar bem exige ter contacto com a realidade, não abdicar dela, tal como exige não abdicar da verdade enquanto referência que existe para além de nossas percepções ou interpretações. O mundo comum só existe enquanto dele fizermos parte, isto é, enquanto tomarmos parte, fisicamente, nele e por ele. Não se trata apenas de defender o mundo e salvaguardá-lo por aquilo que ele é - fruto de nossas escolhas e de nossa ação - mas sobretudo de defender o mundo e salvaguardá-lo para nossos filhos, para as próximas gerações, para que elas saibam pela experiência, a importância da liberdade, de ser e estar com os outros, de cuidar de si e cuidar dos outros, de se conhecer e de conhecer os outros, de forma direta e verdadeira.
Marta Nunes da Costa