O título do livro de Luiz Davi Vieira Gonçalves sinaliza um percurso: Do sopro ao afeto: corpos kõkãmou na experiência
xamânica. Em cosmologias Yanomami, o sopro é a alma, o princípio vital que os humanos compartilham com todo
ser vivo e inanimado. Todos os seres têm alma. No fundo, humanos e não humanos somos todos humanos. Considerando que este, precisamente, é o significado da palavra yanomami — “humanos” —, somos todos yanomami.
Se o sopro, ou alma, é comum a todos os seres, os corpos diferenciam. Como feixes de afetos e capacidades, os corpos são feitos, moldados, construídos. Em cada corpo, um ponto de vista — ou, como gosto de pensar, um lugar olhado (sentido e vivido) das coisas. Na experiência xamânica, corpos se transformam, e se multiplicam. Proliferam multiplicidades. Diversos, inúmeros, emergentes — os corpos se apresentam. E se reúnem. Corpos kõkãmou — “juntos”.
Em sua conhecida parábola sobre a conquista da América, Claude Lévi-Strauss narra um episódio: nas Antilhas, enquanto
os espanhóis enviavam comissões de inquérito para saber se os ameríndios tinham alma ou não, estes submergiam prisioneiros brancos, em prolongados e cuidadosos experimentos, para verificar se os seus cadáveres apodreciam ou não. Na interpretação (ou epifania) de Eduardo Viveiros de Castro, esta anedota não apenas revela a força do etnocentrismo — o favorecimento da própria humanidade às custas da humanidade do outro —, mas, também, a diferença de perspectivas. Para os espanhóis, a dimensão marcada era a alma; para os ameríndios, o corpo. Os europeus nunca duvidaram
de que os índios tivessem corpos — os animais também os têm. Os índios, por sua vez, nunca duvidaram que os brancos
tivessem almas — os animais, as plantas, e os espectros dos mortos também as têm.
Em sua pesquisa, Luiz segue um percurso ameríndio. Do sopro ao afeto, da alma ao corpo. O pesquisador se atira em uma
experiência xamânica. O seu corpo é engendrado. E, com ele, um saber.
- John C. Dawsey
Antropologia/USP