Em Eu não quis te ferir, Rinaldo de Fernandes revisita e atualiza o trágico, a exemplo do que fez em seus romances anteriores, Rita no pomar e Romeu na estrada. O enredo traz a história de Rosa, que desde os treze anos trabalha como doméstica em regime próximo ao servil, e de seus dois filhos: Ismael, o estudioso da Bíblia que quer ser pastor, e Jonas, o aluno aplicado com uma provável futura carreira de escritor.
Rosa, Ismael e Jonas vivenciam em grau máximo a violência, física e psicológica, causada pela sobreposição de múltiplos mecanismos sociais de opressão, sujeição, discriminação e reificação. Sacudidos pela força descomunal dos determinismos, do destino e do acaso, por um lado, e por outro pelo segregacionismo de classe e pelo racismo estrutural, os personagens que formam a trindade responsável pelas mais significativas ações da trama exemplificam a cruel condição de vida dos que são destituídos dos bens materiais e simbólicos eleitos como prioritários pela classe econômica que ocupa o topo da pirâmide social.
O lugar que marca na trama a figura do opressor é ocupado por atores diversos, representantes de instâncias sociais variadas como o sistema escolar, o patronato, a classe médica, o poder judiciário, os círculos de amizade e a família. O romance traz diversas cenas em que se percebe o dedo do autor cutucando as feridas de nossas mais cruéis e veladas relações sociais e familiares. Da professora que solicita uma redação com o título “Coisa de preto” ao menino vítima de racismo, ao filho que se sente profundamente inferiorizado por ter uma genitora feia e que se veste mal, à mãe que não permite que o filho cruze as pernas, ao grupo de crianças que tenta provocar o linchamento de um homem e de seu animal apenas por estarem ambos famintos, feridos e exaustos, é a ferocidade humana que se apresenta.
Sem impor respostas prontas, o romance conduz à reflexão sobre as barreiras impeditivas da mobilidade social, sobre as relações complexas entre livre arbítrio, destino e determinismos sociais e biológicos. É uma obra que confirma o grande talento do autor para escancarar o quanto se tornaram obsoletas as fronteiras, na ficção contemporânea, entre literatura e sociedade, e entre imaginação e realidade.
Rosângela Melo Rodrigues