Escrever é inumano, é percorrer linhas que transbordam para todos os lados a moldura das identidades, segundo a lição fundamental de Deleuze. Ver, pensar e escrever o inumano é postular um pensamento em crise, no qual o homem não é mais a origem nem o fim. Para a literatura, para as artes, a vida não se esgota nas jaulas do sujeito. Formas enlouquecem, limites se esgarçam em favor da potência das metamorfoses e da multiplicidade dos devires. Este livro é um convite à viagem por espaços literários que transpõem as fronteiras para realçar as zonas de indiferenciação entre as espécies e reinos. Percorrendo narrativas de diferentes épocas, esta cartografia encontra um traço resistente de animalidade na escrita, desde que no século XVIII Bretonne propôs a incorporação pelo repórter/narrador do olhar de uma ave noturna para as áreas de sombra das cidades. A categoria do narrador-coruja se movimenta por essas 'narrativas do escuro', que testemunham o desaparecimento dos povos humanos/inumanos diante dos olhos do contemporâneo. Fora da relação causal autor e obra, a literatura instaura uma espécie de 'sem-sujeito' (Derrida), aberto à enunciação do inumano, como em Clarice Lispector. Ao ir longe no recuo do eu, ela contrapõe a premissa cartesiana do 'Penso, logo existo', no modo antropocêntrico, à do 'Existe, logo pensa', no modo ameríndio. Mas é possível ir mais longe ainda nesse exercício de liberdade para afirmar, nos rastros de um animal autobiográfico: 'Existe, logo escreve'!