Lembras-te de que falamos nas almas de escravos que não podem contemplar a beleza? Definiremos o escravo não como aquele que está sujeito a um senhor, mas como aquele que se não pode libertar da miséria dos dias iguais, que não sentiu palpitar dentro em si uma verdadeira aspiração humana ou, se a sentiu, lhe não pôde dar qualquer satisfação. É escravo o que trabalha nas minas ou rema nos barcos, mas é também escravo o que manda remar; como é também escravo o que, porque tem obrigação de alimentar seus filhos, não pode empregar uma só hora do seu dia nalgum dos caminhos de libertação que pusemos como bons. Tu és sacerdotisa, eu sou um homem rico: ambos podemos esquecer a vida contemplando o Hermes ou o mar, compondo ou ouvindo poemas, discutindo com Platão ou lendo os rolos jônicos. Somos dois entre poucos, Diotima; a maioria dos homens está curvada às duras tarefas que os não deixam ser humanos, que os não deixam nem sequer tentar a breve fuga que lhes tornaria mais suportável a vida. Sempre me pareceu que nenhum grego pensava suficientemente no problema dos escravos; consideram-nos quase como um dos fundamentos do mundo, em nada os perturba, na elaboração da sua filosofia, ou no erguer dos seus templos, que haja escravos entre os homens, que só a poucos seja dado lançar-se ao único trabalho que na vida pode ter significado. Eu não acuso os gregos, Diotima, sei bem que são humanos: a sua ideia de humanidade é porém, penso eu, bastante estreita. Ora, o povo donde venho, pouco dado à filosofia, menos ainda à arte ou à ciência, pensa duma forma diferente: é preciso, antes de mais, que todos possam empreender a jornada.
Agostinho da Silva, Conversação com Diotima