Uma caneta deslizando sobre o papel é o começo do mundo ou conhecer o próprio corpo de modo que a linguagem perca o sentido. Parece que nesses poemas existe a vontade de conciliar o grande gesto da criação com as urgências do corpo cotidiano, unindo-os ao invés de separá-los. Entre flutuações quase transcendentais, acontecem quedas de ordem material, e justo por isso, vitais. Os santos deste livro não são o começo do mundo, mas a cadeira que paira na calçada da cidade de nome sagrado sim. Um bairro em Salvador é o começo do mundo, ou, melhor dizendo, é o começo de uma história morta, erguida em um processo colonizador. Por diversas vezes, os poemas imprimem sutilmente aspirações feministas e decoloniais, mas longe de tornarem o trabalho um experimento panfletário. Apenas motivados pela consciência de que todo corpo é um corpo político sem abdicar da sua realidade rotineira e de seu papel histórico. No texto há a menina de sonhos maiores que corpo, um corpo que escreve para viver. O intuito é agrupar, não dividir, é reconhecer a cabeça não como sua, mas parte de um todo. Era tudo parte de um mesmo sonho / que era parte da mesma queda. É saber que os deuses são outros, e o hábito mais mundano possível como assistir a uma série da Netflix coexiste com a incontestável experiência da perda de um útero. O corpo é um corpo feminino, guardou muitos “nãos” e quer dizer o grande sim, mas ao seu próprio desejo. Perambula à procura de algo que o empurre a escrever, não de modo transcendental, e sim na substância única da existência. Se a palavra for o começo do mundo, e o verbo se fez carne, essa obra propõe a imanência radical. Quero ficar perto da terra / quero viajar pelo chão /sem sair do chão. Para que recorrer a uma entidade que gesta o mundo, mas é separada dele, se podemos ver nuvens? Acompanhada por uma inteligência e sensibilidade profunda, ao observar que a sua unha cresce da mesma forma que essa galáxia, a poeta nos deixa embasbacados ao perceber que aquele mundo faz parte desse mundo.
Catarina Costa