A literatura contemporânea tem nos proporcionado obras que tanto se pautam por reflexões dramáticas sobre o mundo urbano, marcado pela barbárie, como ironizam, às vezes com desdém, a condição humana do início do século XXI. Assim é 'Furor na íris',de Marcus Nascimento. Este livro de contos é resultado da experiência urbana do homem na qual a acumulação, a apropriação e a decomposição são fenômenos corriqueiros. O autor toma a síndrome da decomposição como matéria da qual se apropria para construir, ironicamente, personagens e narradores consumidos pela solidão, pela cegueira, pelo abandono, pela farsa e pelo tédio. Essa construção deixa o leitor perplexo, em uma espécie de choque. Com este sentimento é que se percorre o universo de "O Doador de órgãos", título da primeira parte do livro e de um de seus contos. Em "O doador de órgãos", explicita-se o percurso de um personagem que entra para o mercado da doação de órgãos e deixa-se "doar", parte por parte, numa representação da reificação do sujeito através do retalhamento de seu corpo e do corpo do texto. É nessa "decomposição em vida" experimentada pelo personagem que se compõe o fio (tênue) que alinhava várias outras narrativas. A obra que resulta dessa costura entre os contosevidencia um tecido social esgarçado pela presença do corpo vilipendiado e pela natureza absurda dessa face cotidiana da decomposição.