Imersão no universo do desejo, que se sobrepõe à realidade, construção de símbolos que
ganham vida própria e a busca inconsciente por mitos subjacentes. Esses são alguns dos
temas de Gradiva de Wilhelm Jensen, livro de impacto e narrativa singular, que inspirou
nomes como Sigmund Freud, Carl G. Jung e André Breton a reelaborarem suas pesquisas
no campo da psicanálise, simbolismo, arte e pensamento revolucionário.
O enredo de Gradiva - uma fantasia pompeiana (1903), com tradução de Claudio Willer e
Diogo Cardoso, gira em torno de uma viagem desencadeada a partir de um sonho e
permeada por elementos oníricos. Gradiva é o nome de uma peça gravada em baixo-relevo
e estudada pelo arqueólogo Norbert Hanold, que parte para Pompeia em busca dos
vestígios da mulher que teria dado origem a esse objeto.
Willer, que apresenta esta edição, destaca que “o sonho não-sonhado” de Jensen “entra na
categoria das narrativas oníricas pela qualidade poética das descrições de recantos
mediterrâneos. E também por inconsistências, ou ao menos pelo desprezo por algumas
regras que norteiam a narrativa realista”.
Ao trazer na narrativa as intersecções do inconsciente na realidade, a obra teve forte
impacto nos estudos psicanalíticos. Apresentado à narrativa por Jung, Freud dedicou a ela
o ensaio Delírio e sonhos na Gradiva de Jensen (1907).
Além de impulsionar a repercussão da obra, o tratamento de Freud sobre esse texto,
segundo Willer, tem como principal contribuição seu valor epistemológico, ao trabalhar o
conceito de sobredeterminações. “O criador da psicanálise mostrou que tudo pode ser outra
coisa; que todos os signos e coisas que aceitamos tem significados adicionais.”
A recepção entre os surrealistas de Paris colocou Gradiva em outro patamar, relacionado às
pesquisas do inconsciente na elaboração artística e na libertação humana, ao identificá-la
com a categoria de acaso objetivo, “o que ocorre quando o desejo se sobrepõe à realidade,
configurando-a”, destaca Willer. O conceito foi elaborado por Breton em 1932 em Les Vases
communicants [Os vasos comunicantes].
O ensaio de Elvio Fernandes, que completa a edição, aponta Gradiva como uma ilustração
das mais contundentes desse conceito, “a realização do desejo mais íntimo”, e destaca que
a potência poética da narrativa “engendra leituras apaixonantes e apaixonadas, sobretudo
no que diz respeito às suas relações com a psicanálise, as ciências ocultas, a mitologia e o
surrealismo”.
Tal foi a importância atribuída por André Breton à obra de Jensen, que o poeta deu o nome
de Gradiva à galeria de arte que abriu em 1937, no número 31 da rue du Seine em Paris.
Marcel Duchamp projetou a entrada principal da galeria com a forma de dois amantes que
caminham abraçados.
“Sobre a ponte que reconecta o sonho à realidade, ‘erguendo ligeiramente seu vestido com
a mão esquerda’: GRADIVA. Nos confins da utopia e da verdade, isto é, no coração da vida:
GRADIVA”, escreve Breton no texto de inauguração da galeria, também presente nesta
edição.
Para o jornalista e crítico cultural Bruno Yutaka Saito, que assina a orelha, com Breton,
Duchamp e outros artistas ligados ao surrealismo, Gradiva “supera a patologia” que permeia
a análise de Freud sobre a obra. “Mais do que título de livro e personagem do delírio de
Hanold, Gradiva virou um símbolo cultural. Foram mais de dezoito séculos para que Hanold
encontrasse sua paixão rediviva. E desde então já se passou pouco mais de um século
para que Gradiva chegasse até nós.”
É a Gradiva de Breton e dos surrealistas que a presente edição apresenta aos leitores,
conforme destaca Marcus Rogério Salgado na quarta capa. “Acompanhemos, pois, nesta
arqueologia do olhar desejante, Gradiva, aquela que avança, e todos que seguiram, desde
então, em seu encalço: Freud, Breton, Max Ernst, Éluard, Dalí, André Masson e, é claro, o
apaixonado sonhador Hanold. Diante de nossos olhos, eis Gradiva Rediviva.”