Os textos nascentes nos fazem sentir surpreendidos pela sobre impressão de paisagens e personagens arrancadas às suas histórias que se vão transfigurando para que os encontros inesperados, felizes ou de confrontação possam ter lugar… Escrevi-lhe uma carta. Uma carta vazia, sem uma letra que fosse. Uma página levemente amarelada dentro dum envelope carimbado algures, numa cidade distante… (Mil novecentos e setenta e dois). Figuras simples ou de estatuto superior, rebeldes ou apaziguados, mostrengos ou beldades que nos enchem os olhos de espanto, encanto ou pavor, uma linhagem de seres para quem a resignação por vezes faz sentido, mas outros não aceitam ver a sua vida “real” amputada de vibração, intensidade e amplitude. …Amanhã fujo. Tenho um esconderijo nos caniços onde os rouxinóis fazem os ninhos. Depois chocam os ovos que haverão de estalar por dentro para surgirem corpitos vorazes com bicos enormes que cedo aprendem as artes do ludíbrio. E depois, depois aquilo que realmente me interessa – o voo! Quero viajar na geografia sem limites, colocar-me às ordens do vento e tornar-me um migrador peregrino… (Amanhã fujo). Na ânsia de se abrirem à liberdade de consciência, ao direito à autonomia da vida, ao dom poético, esses seres vindos do passado ou habitando o futuro vão criando o mundo da poesia que o autor quer ver transmigrado.
Maria João Coutinho
Dezembro de 2020