Mais do que um romance, 'O Homem sem Qualidades' é o maior projecto romanesco, deliberada e quase necessariamente inconcluso e inconclusivo, da literatura do século passado. Um rio sem limites nem margens, que não desagua em nenhum mar conhecido, objecto inclassificável, para lá do ‘literário’ e da ficção. No momento da morte inesperada de Musil em 15 de Abril de 1942, no exílio de Genebra, O Homem sem Qualidades é verdadeiramente o ‘livro por vir’, aquele cuja essência - no seu protagonista acentrado, no processo da sua génese, no cerne do seu pensamento - é a de um laboratório de possibilidades que o transformarão na obra aberta por excelência e na ‘tarefa criadora [mais] desmedida’ da história da literatura moderna. O Homem sem Qualidades será, durante mais de duas décadas, a obra em processo de criação e transformação que se autonomiza e se impõe de forma obsessiva e implacável ao próprio criador, aprendiz de feiticeiro que a controla cada vez menos à medida que ela se vai transformando numa rede rizomática de possibilidades de crescimento e de perspectivas de finalização sempre adiada, que parece querer reflectir o próprio feixe aleatório de possibilidades que é aquilo a que chamamos ‘realidade’. Se a ironia é neste livro, como diz Blanchot, ‘um dom poético e um princípio de método’ que modula, não apenas a palavra mas também a própria composição romanesca, na oposição contrapontística permanente e irresolvida entre ‘a exactidão e a alma’, a reflexão e os sentimentos, o indivíduo em busca de si e o mundo dos factos (nas vésperas da Primeira Grande Guerra), essa mesma ironia haveria de determinar todo o acidentado e contraditório processo de génese e de publicação deste objecto literário esquivo que, ao contrario do que frequentemente se tem dito, será mais um não-romance do que um anti-romance.