A realidade pandêmica instaurada a partir de 2020 o trouxe de volta ao centro da cena, com muita força, ressignificando, em sua travessia intempestiva, o conceito de distopia, tão caro à literatura.
O caos como elemento de formatação do cotidiano, das relações, das mudanças de rumo da vida na aparente imobilidade do medo e do isolamento, entranhando nas mínimas fibras da imprevisibilidade, é o que nos espreita nos contos desta antologia inquietante e provocadora.
Vozes em busca de sentido, corpos à procura de palavras, narrativas às voltas com a linguagem possível num mundo de impossibilidades, desencontros, perdas, angústias, solidão.
As vidas das personagens e seus espaços se pulverizam num cenário urbano opaco, em que a casa perde sua dimensão de intimidade para se tornar uma extensão forçada e ameaçadora da esfera pública, do trabalho, da política e da morte. A casa também se torna cárcere.
Corpos exauridos, fantasmagorias que vagam por ruas interditadas para o convívio, a violência ensaiada em pequenos gestos, às vezes quase imperceptíveis, o que esses contos nos revelam, além da sensibilidade aguçada desses autores e autoras que cursaram o Curso Livre de Preparação de Escritores (Clipe), do museu Casa das Rosas, é o olhar de perplexidade, mas também generoso, diante de uma realidade que se esfarela no ar irrespirável, de um futuro desfocado.
A experiência como alunos do Clipe, ainda na versão online, em
2022, permitiu à turma um encontro singular na diversidade de dicções, experiências e identidades, com todos os tipos de atravessamentos estéticos e existenciais propiciados pela imersão compartilhada no processo de escrita, tendo a companhia e a orientação de grandes mestre/as escritore/as.
Cada narrativa aqui engendra uma investigação sutil no microcosmo do caos nosso de cada dia, explorando com cortes profundos na pele do ficcional e do biográfico a indistinção entre os dramas íntimos e a tragédia coletiva, entre o espaço minimalista de um quartinho dos fundos e o mar aberto. Ao fim da leitura, ficamos com a sensação de que o conjunto de textos reunidos em Itinerários para o caos traduz a paisagem que habitamos como páthos. (Texto de Reynaldo Damazio, diretor da Casa das Rosas)