É espantoso que a bibliografia sobre as possíveis relações entre esportes, filosofia e/ou literatura seja tão escassa no chamado “país do futebol”. Tanto mais que, nas últimas décadas, as ciências ditas humanas foram invadidas por uma saudável vaga de estudos transdisciplinares. Se, por exemplo, o corpo e suas afecções têm dado matéria para abordagens em diversos setores de investigação, como artes, literatura e filosofia, por que ali onde o volume corporal mais se encontra em evidência – os desportos – as pesquisas acadêmicas híbridas são escassas?
Sendo um pouco mais enfático: não há nenhuma dúvida de que o futebol, o tênis e a natação, entre inúmeras outras práticas, são uma forma requintada de arte, implicando talento, denodo, perseverança e inteligência, para se levar os exercícios a sua mais alta realização. Por que então o silêncio como sintoma de preconceito? Uma hipótese que não pretendo demonstrar, mas apenas aludir: talvez o fato de os esportes terem se tornado, ao longo do último século e ainda no atual, objeto de maciça exploração midiática tenha gerado nos pesquisadores universitários certa aversão instintiva. Porém, justamente, hoje mais do que nunca a crítica da grande mídia faz parte da grade curricular de comunicação e letras!...
A coletânea de ensaios publicados por João Tiago Lima sobre o assunto preenche com brilho parte dessa imperdoável lacuna e decerto estimulará o desenvolvimento de outros estudos do mesmo gênero. Assim, quando recebi o convite para fazer uma curta apresentação deste Jogar sem bola, fiquei de imediato seduzido pelo subtítulo, exatamente por reunir áreas normalmente separadas na história do pensamento: “Literatura, filosofia e futebol”. Substituindo-se a palavra futebol por jogo, tem-se a dimensão das reflexões que o autor intenta compor, com recurso a, entre outros, Heráclito, Martin Heidegger, Friedrich Nietzsche, Jacques Derrida, Kostas Axelos, Eduardo Prado Coelho e Herberto Helder. Com isso, abre-se a possibilidade de se desenvolver um verdadeiro pensamento lúdico ou desportivo.
A meu ver, o capítulo mais importante seria “Ética e futebol – algumas considerações”, que aborda as relações entre jogo e ética. Entre tantos aspectos, comparece aquele que se refere à noção de erro. Para o autor, o erro é parte do jogo, na medida em que a infração às regras está prevista e deve ser corrigida sempre que ocorrer. Aqui talvez se imponha a distinção entre falta e erro. As faltas são cometidas pelos jogadores e devem ser reparadas pelo árbitro, com a ajuda de seus assistentes. Todavia, quando o próprio juiz se equivoca, por exemplo, não apontando uma falta ou apontando indevidamente uma falta que não houve, aí tem-se o chamado erro de arbitragem. Os jogadores também erram quando – não satisfeitos em incidir numa falta, a qual faz parte de qualquer jogo – acabam agredindo-se uns aos outros, devendo ser expulsos de campo para que a partida continue a transcorrer.
Em síntese, a falta faz parte do jogo, e é dentro dele mesmo reparada, sem necessidade de exclusão dos infratores ou de posterior punição ao juiz, conforme for o caso. Já o erro rompe o contrato desportivo e por isso deve-se afastar quem o comete, a fim de que o jogo não seja prejudicado. Do ponto de vista ético, isso é sumamente importante, pois coloca a todos na perspectiva da alteridade: importam não somente as regras, mas também os indivíduos que a elas se submetem ou deixam de se submeter, em face do outro. Como bem arremata João Tiago Lima: “É preciso, portanto, repensar as relações entre a ética e o futebol à luz da própria historicidade das regras do jogo e sobretudo dessa espécie de experiência limite que consiste em saber jogar com elas”.