Bem de perto, os heróis cheiram mal. É isso que denuncia sua humanidade. E é assim que os mitos começam a ruir. Episódios históricos só viram épicos à custa do extermínio das verdades inconvenientes. Forjam-se heróis para ocultar homens. A história é transformada em lenda. E lenda, nesse caso, é a história lavada de suas indignidades. 'A Longa Marcha' é o mito fundador da China de Mao Tse-tung. Em 1934, o exército comunista, que pode ter chegado a 200 mil pessoas - os números são controversos -foi expulso de suas bases pelas tropas nacionalistas de Chiang Kaishek. Empreendeu então uma travessia que superou os dez mil quilômetros. Estima-se que apenas um quinto chegou até o fim. Os sobreviventes fundaram a nova China não sobre a história daLonga Marcha, mas sobre a lenda. Ela se tornou a peça de propaganda da revolução. Sun Shuyun, como todos os chineses, cresceu embalada por canções e filmes heróicos. O mito é parte do que ela é. Mas havia demasiadas perguntas sem respostas. Setentaanos depois, em 2004, Sun refez a marcha do exército comunista. Encontrou mais do que foi buscar. Seu livro dá voz aos homens e mulheres que atravessaram a China com os pés enrolados em trapos. Restaram poucos não apenas porque os expurgos, as doenças, o frio e a fome mataram mais do que o inimigo - mas porque as deserções foram maiores do que as mortes em batalhas. Em suas páginas, Chen confessa que se alistou para ganhar seu primeiro sapato. Huang narra os dias em que esperou sua vez na fila para beber a urina dos cavalos dos oficiais - único remédio disponível para soldados com diarréia. Wang conta que deixou um rastro de sangue na neve. Chegou ao topo da montanha viva, mas nunca mais menstruou. É a própria China que emerge das lembranças. Sua geografia, sua cultura, suas dores. Ao fundo, é a voz de Sun Shuyun que se ouve. Ela faz também uma travessia para dentro de si mesma. É honesta ao expor o embate travado entre as vozes do mito que a habita e da História que foi buscar.