Há muitos livros espalhados na mesa do pesquisador. A resistência de Júlian Fuks. K. de Bernardo Kucinski. Mar Azul de Paloma Vidal. Setenta de Henrique Schneider. Formas de voltar para casa de Alejandro Zambra. O pai da menina morta e O seu terrível abraço de Tiago Ferro. As coisas que perdemos no fogo e Os perigos de fumar na cama de Mariana Enriquez. Noite em Caracas de Karina Borgo. Perto de cada um desses livros, Marcelo Santana Ferreira pergunta pela frágil força da literatura no enfrentamento da violência ditatorial no continente latino-americano, prestando bastante atenção aos modos como cada texto conversa com seus desaparecidos e reivindica a presença deles diante de nós, no tempo de agora, em que se dá a leitura. A reflexão se faz em proximidade com o pensamento de Walter Benjamin, com a convicção de que articular o passado não significa conhecê-lo tal qual foi, como coisa acabada. Significa disputar seus sentidos inconclusos no presente, a partir de práticas rememorativas que a ficção literária ajuda a conjurar por meio de um trabalho de pesquisa de linguagens e de imagens, empenhadas em explorar “conexões vivas” com eventos passados, que ainda hoje nos atingem, interpelam e reclamam consideração. Porque “a ditadura não chega ao fim enquanto se produzem mais e mais desaparecidos”. Essa premissa contundente orienta o estudo pós-doutoral de Marcelo, aqui publicado em livro. Um livro que foi tomando forma num presente turbulento, nos rescaldos do governo Bolsonaro, pela observação dos efeitos nefastos do recrudescimento da extrema direita no Brasil e no mundo, tudo isso agravado pela experiência pandêmica que dizimou tantas vidas mais. Assim, a incursão nas obras literárias que problematizam as heranças de períodos ditatoriais na América Latina é permeada pela consciência de que a violência estatal persiste e ameaça cotidianamente “existências racializadas, práticas sexuais dissidentes, políticas de resistência.” Pelo olhar sinuoso de Marcelo, surgem leituras rebatidas entretempos e enlaces surpreendentes entre obras tão heterogêneas, reunidas pelas fraturas intergeracionais que cada conto ou romance põe em cena, à sua maneira, na voz enunciativa de pais e de filhos, que mal se equilibram nas linhas (interrompidas) de transmissão das experiências do exílio, da tortura, da morte imposta pelo Estado. Observar formas de embaraçar, desviar, cortar, esgarçar, religar, recompor e/ou recriar essas linhas de transmissão nas linhas dos textos lidos é o convite que o autor nos faz. Para que nos juntemos, pela ação da leitura, nesse exercício coletivo de reimaginar (outras) histórias.