A morte traça uma fronteira-limite do pensamento. Para lá dela, nada há a experienciar ou a pensar. Fractura radical, deixa-nos à beira de um impensável abismo. Para o transpor, inventámos a transcendência e a imortalidade. E com elas surgiram as teocracias, as realezas mágicas e os regimes políticos que criaram as maiores desigualdades e injustiças. A democracia nasceu destituindo a transcendência religiosa do seu estatuto fundador da ordem política. E a imanência trará consigo, em princípio, uma possibilidade de igualdade e de justiça. Porque não deixam as democracias modernas de abrir a porta aos poderes autocráticos neofascistas? Certos resíduos da antiga transcendência parecem permanecer nas estruturas jurídico-políticas e nos mínimos gestos da cidadania democrática. Como fazer para os ultrapassar? Poder-se-á conceber um sistema democrático plenamente imanente que impeça a crença na imortalidade da alma de perverter a acção política? Que aconteceria então aos mortos, que celebramos e veneramos, que sustentam as nossas vidas? Deixariam as suas memórias de nos confortar e os seus espectros e fantasmas de nos assombrar e inquietar? Podem as nossas decisões em vida ser influenciadas pelo destino que damos aos mortos?