Certos momentos históricos são capazes, quase sem que se perceba, de definir uma nação. Ao ambientar este que é seu mais ambicioso romance no fim da Primeira Guerra Mundial, Denis Lehane escolheu uma dessas encruzilhadas em que o novo confronta-se com o velho, em que um passo em falso pode conduzir todo um povo a um futuro incerto.
São tempos sombrios. Os soldados que voltam para casa encontram indústrias bélicas fechando as portas, desemprego, conflitos raciais e políticos de toda sorte. Por um lado, anarquistas e comunistas aproveitam para intensificar suas atividades entre os operários. Por outro, setores da população negra começam a unificar-se num embrião das lutas por direitos civis que tomariam os Estados Unidos nas décadas seguintes. Em meio a esse já turbulento cenário, políticos americanos acenam para uma proibição na venda de bebidas alcoólicas, e a gripe espanhola começa a atravessar o Atlântico.
Ambientado em Boston, cidade natal do autor e que figura em quase todos os seus livros, Naquele dia conta a história de duas vidas em rota de colisão. Danny Coughlin, descendente de irlandeses, é filho de um capitão de polícia e seguiu os passos do pai. Escalado para infiltrar-se em organizações bolcheviques e anarquistas, envolve-se na luta trabalhista e passa a defender a sindicalização do departamento de polícia. Caminhando no fio da navalha entre a ilegalidade e o trabalho de infiltrado, Danny acabará por se tornar figura-chave de uma guerra entre o governo e as forças da lei que se assoma no horizonte.
Já Luther Laurence, o jovem negro cuja vida aos poucos se ligará à de Danny, chega a Boston por um mero acaso. Demitido para dar espaço à mão de obra que virá da Europa com o fim da guerra, e fugindo da polícia por um crime cometido em outro estado, Luther tentará passar despercebido em meio aos inúmeros conflitos sociais que o cercam. Mas Boston, cidade conhecida pela forte imigração de irlandeses, não é exatamente receptiva aos negros e, entre a fuga da polícia e a busca por algum tipo de sobrevivência, Luther se verá embrenhado em uma briga que, se não é sua, passará a dominar seu dia a dia.
Apoiado em uma rigorosa pesquisa, Lehane recria em detalhes a Boston do início do século XX. Mas engana-se quem pensa encontrar aqui um típico romance de época, e leitores de Sobre meninos e lobos e Paciente 67 irão reconhecer a linguagem ágil e os diálogos cortantes que marcam a obra do autor. Dessas duas trajetórias tão distintas, Lehane parece extrair a história moderna de seu país. É como se o leitor pudesse assistir, de um ponto privilegiado, ao nascimento de uma nação, em toda a complexidade que a História exige, e que só os grandes romancistas podem alcançar.