Existiria por acaso um canibalismo onírico, fundador do novo mundo? Com essa questão, o poeta e tradutor Sérgio Medeiros constrói O desencontro dos canibais, uma insólita transformação da Lenda de Jurupari, publicada por Ermanno Stradelli a partir de tradições orais indígenas da Amazônia. Medeiros é organizador de uma edição importante do próprio Jurupari e de estudos sobre essa e outras narrativas ameríndias, além de assinar uma tradução fundamental do grande poema mítico dos Maia-Quiché, o Popol Vuh. Ninguém melhor do que ele, portanto, para realizar tal contaminação desejada entre os universos indígenas e a criação literária. Munido de toda essa bagagem, o autor oferece pequenos contos marcados por uma série de canibalismos, mas diferentes, aqui, da antropofagia ritual outrora realizada por alguns povos indígenas. Nestas páginas, o canibalismo será reinventado e investido de uma potência criadora, capaz de gerar alteridades e estados insuspeitos. O livro-cidade-floresta é povoado por árvores que se comem entre si, por gaivotas e urubus que quase desaparecem por não resistirem ao impulso de autodevoração, por personagens que atravessam estados animais e vegetais entrecruzados na referência projetada pelos contos. Apresenta-se um mundo em que a própria Terra carece de solidez e parece se liquefazer, como se ainda não tivesse fronteiras ou contornos definidos. Mas a Terra, assim como os outros tantos não humanos humanizados dessa narrativa, será também uma pessoa a lavar suas roupas, as roupas que criam a cor das águas e que o vento gostaria de usar. O desencontro dos canibais estabelece um registro ficcional interessante a partir desse diálogo com as formas míticas de pensamento mantidas há tempos pelos narradores ameríndios. Elas se referem a outras formas de realidade, capazes de propor para a literatura caminhos menos traçados do que poderiam ser. Sérgio Medeiros tem o mérito de explorá-los de maneira intrigante em seu livro. Pedro Cesarino