Raramente uma escritura apresenta-se assim. Soltar os freios, dar voz aos ´segredinhos sujos´, descascar a imagem respeitável de uma ramosa árvore genealógica, cuja sucessão de frutos vai gerar o próprio autor, é o que Gabriel Bolaffi faz em ´O Legado de Renata´. Desfiando, com forte senso de humor e ironia, fofocas, mitos familiais e episódios históricos, ele os entrelaça no seu relato como um álbum de fotografias guardadas no fundo de uma gaveta, à cuja vista acodem lembranças, como que contadas de pai para filho. São invocações que, no entanto, projetam para além de sua sentimental mímese figurativa uma crítica contundente não só dos membros do clã vistos em close, como da época em que viveram e dos valores que deram sentido às suas vidas. Nada é gratuito nesta narrativa. Romance autobiográfico às avessas, que conta a formação do narrador pela crônica das personagens e dos incidentes selecionados pela memória coletiva da grei e pelos flashes inventivos do memorialista, o jorro de inconfidências, surgido da intimidade de cada relato, deságua na saga tragicômica desta família judaica de raiz sefardita, mas secularmente italiana, burguesa no seu status e nas suas aspirações, que se vê assaltada, violentada e expulsa pelo fascismo nazificado do Eixo, a apontar para o terror da guerra e a tragédia do holocausto. Felizmente para Renata, Giulio e o filho há um happy end: a imigração para o Brasil e o começo de uma nova vida em meio às agruras e desajustes do transplante forçado. Tal é o inventário deste legado que justifica, por todos os títulos, o nome deste livro.