[…] o texto patente na Pedra de Chabaka é o herdeiro de uma longa e milenar tradição e reflete como nenhum outro a intensa reflexão teológica e política em torno do problema da criação do mundo. Embora muitos outros textos cosmogónicos alusivos à criação do mundo tenham sido redigidos no antigo Egipto, grande parte deles protagonizados por outras divindades criadoras, a verdade é que o Livro das Origens é o único texto que chegou até nós que, para além da enunciação de eventos mitológicos (como é de regra nos textos cosmogónicos egípcios), inclui também uma narrativa sequencial formulada através de uma interpretação racional da criação do mundo. Por essa razão, não é excessiva a comparação que o título insinua com o Génesis bíblico pois partilha com esta obra uma visão unitária do ato criador que se desdobra de um modo articulado e coerente através da materialização progressiva do plano divino. Os dois textos cosmogónicos têm ainda em comum o facto de se basearem em referências míticas antiquíssimas, integrando-as numa nova e racionalmente articulada visão teológica. Graças à sua vigorosa e “universal” formulação teológica os dois textos exerceram um impacto duradouro quer na cultura e na religiosidade do povo que os redigiu, como na especulação filosófica e teológica de povos que com eles conviveram, originando um caudal de reflexão que se foi atualizando e revestindo de novas roupagens e interpretações. Importa ainda salientar que ambas as composições foram sendo buriladas sensivelmente ao longo do mesmo período de tempo (séculos XIII-VI a.C.) e que, apesar da aparente divergência de horizontes religiosos, se apresentam como produtos afinal bastante próximos de um caudal de reflexão comum. Cada um destes textos a seu modo elaborava uma versão unitária e compreensiva de deus e do mundo.
Ao escolhermos a designação de Livro das Origens tivemos ainda em conta um outro aspeto, porventura o mais decisivo, relacionado com a especificidade da mensagem veiculada no texto. Nele perpassa a ideia de um deus criador que literalmente «escreve» o mundo, povoando-o de hieróglifos vivos que permanentemente atualizam o seu pensamento primordial. Estabelece-se assim uma equivalência entre “livro” e “mundo” que é específica desta obra e que justamente merece ser destacada na designação que a evoca.