As nossas lembranças são nossas? Ou nós é que pertencemos a elas? Você atravessa a rua e algo te atravessa. As lembranças são como espinhas. Nos interrompem – e como doem. O presente crivado de passado, como erupções na pele. São as lembranças, querendo sair. É o que aprendo sobre a relação entre o agora e o ocorrido neste O livro do cão de Gabriel Gonzalez, um poeta para quem a teoria da relatividade e a coexistência dos tempos no inconsciente se converteram em força, tema e dicção poéticas. Este é um livro de poemas, mas também um ensaio sobre memória e esquecimento, palavras e coisas, viver e morrer. Por isso Gabriel Gonzalez convoca procedimentos da poesia analítica de João Cabral de Melo Neto e do cinema ensaístico de Jean-Luc Godard. No entanto, embrulha esse tema em algo característico da infância. Às vezes em perguntas típicas das crianças (“para onde vão os cães?”); às vezes com seu ânimo e gracejo quando imitam a linguagem dos adultos (“vidas e doutrinas dos cães ilustres”). Mas aqui também encontramos algo que funda a infância e que frequentemente esquecemos: o terror. E uma das formas do terror não é senão a dúvida. Por isso, O livro do cão se sustenta numa poética da incerteza. Nele, como num livro de Borges, cada fragmento da realidade é um labirinto. Não encontraremos aqui, no entanto, um Minotauro, mas um ser metade homem metade cão. Ele te conduz, com olhos tristes, para uma vida de cão. E para onde vai o cão? [Rafael Zacca]