O regime escravista é a "ordem prévia" e a "infeliz origem imanente" que continua a marcar, de maneira camuflada ou escancarada, a sociedade brasileira. Há nisso uma genealogia da crueldade toda particular. Não satisfeita com o desprezo social e a exploração máxima dos pobres reduzidos a objetos usados e descartados, essa estruturação sádica goza com a negação do valor universal dos direitos humanos, na contramão dos quais sempre vingou. Sua violenta grosseria reacionária ganharia em precisão e localização, diz Ab Sáber, se chamada de néo-escravista (em vez do rótulo, mais genérico nesse caso, de fascista).
Denegada, reprimida ou concedida sob a espécie do "ponha se no seu lugar”, a vida popular escravizada não acede por longo tempo a graus mínimos de simbolização palpável nos discursos nacionais. Este livro vai encontrá-la num meandro que é também um vislumbre: a memória de um soldado mercenário alemão de nome quase impronunciável - Carl Schlichthorst - que circulou pelo Rio de Janeiro entre 1824 e 1826. Só um estrangeiro poderia ter entrevisto então, na aparição casual de uma moça negra que vende doces, dança, canta, faz música e poesia enquanto comercia talvez seu corpo, a presença de uma força civilizacional utópica em meio às violências e às ambivalências cruéis de sua condição.
As consequências dessa revelação não são tratadas aqui de maneira óbvia nem esquemática. Há nela toda uma proto-história do samba e um vespeiro de questões contraditórias envolvendo os espaços cavados no Brasil pelas práticas culturais dos escravizados. Se ideias fora de lugar são o timbre do liberalismo escravista, é no lugar fora das ideias que se dá esse poderoso acontecimento invisível.
JOSÉ MIGUEL WISNIK