OS ÚLTIMOS DIAS DE LILI DAS JOIAS

Lili das Joias ou Rosa Schwartz, a cidade do Rio de Janeiro, os amores de Samuel Punzi. Encantado com o charme da jovem asquenaze russa, Samuel Punzi nos brinda com um roteiro ficcional-histórico (ou seria histórico-ficcional?), passeando pelas ruas da então capital da República brasileira, percorrendo os trajetos de emigrantes de variadas origens: russos, espanhóis, italianos, europeus orientais, asquenazes ou não. Trajetos esses percorridos por sua avó materna, nascida em 1910, e seu pai, nascido em 1917, ambos de famílias italianas como bem denuncia seu sobrenome. História e ficção se fundem. Na realidade, se complementam. Sei que isso pode parecer herético a historiadores que veem seus trabalhos como fruto de um cientificismo arraigado e aspiram à verdade dos fatos, mas, afirmo, o ficcional comporta mais verdades do que nossas metodologias e teorias podem supor. Essa ficção, reproduzindo-se como um autêntico thriller, nos conduz por ruas do Centro do Rio de Janeiro, onde o trottoir chocava mentes provincianas, os bordéis de diferentes classes apresentavam-se como casas de permissão, lazer e prazer. Distintos cavalheiros selecionavam suas parceiras sexuais e, nesse mundo, viveu e morreu Lili das Joias.

Judia russa, Rosa Schwartz deixa sua Odessa, onde cantava trechos da ópera ucraniana Taras Bulba, vindo primeiramente para a cosmopolita Buenos Aires e, depois, para uma aspirante ao cosmopolitismo, a cidade maravilhosa do Rio de Janeiro. Esse trajeto, como de milhões de emigrantes, vindos de várias regiões da Europa, na segunda metade do século XIX até a primeira década do século XX, é permeado por sonhos de viver na América, fazer a vida, construir seus lares, enriquecer (por que não?). Rosa faz parte desse processo, mas, assim como milhares de jovens da Europa Oriental, acabará na prostituição. No Rio de Janeiro, essas jovens de pele branca, cabelos loiros, algumas de olhos claros, serão chamadas de polacas. Prostituídas, não lhes resta outra saída a não ser sobreviver e, explorando os meandros da mais antiga profissão, alcançar algum status privilegiado. Esse thriller mistura, pois, pessoas tão diferentes como Bernardino Barceló e Maria Riera, Siegmond Richer, Izidoro Koppler e outros. Em comum, o desejo ardente de fazer a vida na América.

Samuel Punzi relata essas trajetórias e de outros personagens, apresentando um primeiro clímax, quando do brutal assassinato de Lili das Joias, e prosseguindo, como acompanhando os passos e métodos um tanto quanto originais do Delegado do 5º Distrito, Dr. Cid Braune, proporcionando um segundo e definitivo clímax, com o desvendamento do pérfido crime. Expõe nessa trajetória as relações pessoais em um meio marginal, oculto, que é o da prostituição; mas expõe também a cidade do Rio de Janeiro, recém-saída do bota-abaixo de Pereira Passos, e que se apresentava como uma aspirante à Paris Tropical.

Vários motivos, portanto, para ler e se deliciar com esse belo trabalho. Um trabalho, diga-se de passagem, que exigiu do seu autor uma verve de pesquisador que ele colocou à prova, explorando, principalmente, a hemeroteca da Biblioteca Nacional, onde pôde reconstruir trajetórias, acompanhar o trabalho de investigação, deliciar-se com as narrativas sobre um Rio de Janeiro que se modernizava, excluindo a população mais pobre do seu Centro, consagrando os luxuosos bairros da Zona Sul e promovendo uma interação entre o bas-fond e os casarões da elite republicana nos bairros da Glória, Catete, Flamengo e Botafogo. Esse sentimento boêmio, próprio do autor, proporciona um olhar apaixonado para a Cidade, para a vida que nela tem lugar, para os cinemas que são inaugurados e representam, por si só, um traço de modernidade, para os primeiros automóveis que circulam nas ruas de um espaço urbano higienizado, construído à imagem e semelhança das grandes capitais europeias. Esse olhar se dirige também às moças que fazem amor e fazem do amor a sua profissão. E mesmo não sendo amadas, sonham com uma ascensão social, uma mudança de status, uma postura respeitosa em relação à sua condição tão desrespeitada. Rosa que se tornou Lili, por força das circunstâncias, em seus sonhos canta trechos de Taras Bulba, canto da sua Ucrânia tão distante, que a brutalidade do seu meio afastará ainda mais.

Wolney Vianna Malafaia