Este romance experimental e bem-humorado, porém de contornos trágicos, acompanha a dissolução mental de Ana, uma professora universitária de literatura às voltas com o confinamento da pandemia de Covid-19. Recém-saída de um divórcio, ela tenta elaborar o programa da disciplina que deve ministrar à distância, enquanto se divide entre uma relação paranoica com seu gato Felício, um caso com seu psiquiatra e um mergulho de cabeça em três relacionamentos amorosos seguidos. O primeiro deles, com Alice, jovem que Ana conhece em uma ocupação habitacional e com quem ela desenvolve uma plataforma de prostituição on-line para garantir a renda das demais moradoras durante a quarentena. Os outros dois casamentos fincam pé no absurdo com uma riqueza de detalhes desconcertante: um pangolim e um morcego são os improváveis parceiros — e vítimas — de Ana.
Narrado em primeira pessoa, o romance intercala relatos de uma rotina de alta voltagem sexual com lembranças da juventude da protagonista, em que já se encontrava plantada a semente da paranoia de fundo político que volta a
atacar no enclausuramento doméstico. Aos relatos íntimos somam-se ainda as experimentações literárias, que Ana tenta encaixar na disciplina que precisa lecionar. Animais antropomorfizados e carregados de simbologia povoam os contos que ela, em estado de liquidação mental, julga dignos de figurar no programa do curso, enquanto seus colegas a alertam dos perigos de ir contra a correnteza em tempos politicamente sombrios.
Com uma prosa cristalina, cortante e sedutora, e coroado por um epílogo que abre a narrativa para o mundo contemporâneo com uma história real que nos convida a repensar a própria ideia de verossimilhança, o romance se
metamorfoseia na caixa de Pandora. Dela também saem outros mitos clássicos, possíveis chaves de compreensão dessa atmosfera sexualizada, grotesca e violenta. Mescla habilidosa de crítica social e implacável autoironia, Pandora lança mão do experimentalismo para melhor descrever uma realidade em que os perigos são palpáveis, mas as consequências não são compartilhadas de forma igualitária por todos.