À medida que o tempo passa a tinta velha em uma tela muitas vezes se torna transparente. Quando isso acontece, é possível ver, em alguns quadros, as linhas originais. Isso se chama pentimento, porque o pintor se arrependeu, mudou de ideia
Pentimento é o mais conhecido dos livros de memórias de Lillian Hellman, aquele que, contradizendo o título, continua cada vez mais visível. Nele, a escritora combinou, com impressionante precisão, o relato autobiográfico e a composição de retratos. A ordem cronológica
cria tensão crescente. Tudo começa em família, com a sucessão de parentes, a descrição lúcida
e meio irônica dos pais. A matéria-prima com que a autora começa a compor o seu “livro de
retratos” é a mesma utilizada em algumas de suas peças de teatro.
Um episódio muito marcante de Pentimento está relacionado à ordem dos acontecimentos históricos: trata-se de Julia, o nome fictício de uma amiga que se transformou numa ativista antifascista em Viena. Anos depois, a mesma amiga conseguiu envolver a escritora numa perigosa missão: entregar dinheiro para a resistência a Hitler na Áustria. Essa história, quase implausível, acabou merecendo um filme – Julia (1977). Atualmente, não há dúvidas de que a personagem-título foi inspirada na vida da psicanalista Muriel Gardiner (1901-1985), com o detalhe de que a escritora jamais a encontrou... O fato leva à conclusão de que o livro de Lillian Hellman não é apenas memorialismo, mas pode ser sobretudo ficção.
Pentimento também trata do grande amor da escritora por Dashiell Hammett (1894-1961), autor consagradíssimo de histórias policiais. São páginas marcadas pela ansiedade, pela pura devoção de uma mulher por seu amante ao longo de 30 anos – o retrato defi nitivo no qual todos os vestígios, reais ou não, estão presentes, como queria Lillian Hellman, orgulhosa de suas histórias e de sua imaginação.