Sabemos que a arte do movimento é congenial à literatura de Julio Cortázar. Numa análise que se vale do moderno conceito de alegoria de Walter Benjamin, Fabiana Camargo convida o leitor a acompanhá-la em sua aventura crítica: percorrer os escritos cortazarianos para identificar seu modo de encenar diferentes técnicas cinematográficas (em particular, a montagem) e, também, por outro lado, para identificar singulares contaminações literárias na linguagem do cinema – trânsitos, traduções, transcodificações. Vemos aqui o enredamento textual e imagético que a cada vez arrebata o leitor/espectador num vertiginoso jogo irônico em que se parte da contemplação de um mundo arruinado, o da modernidade, para dotá-lo de novos sentidos. Com isso, há uma inversão entre o que se crê ser percepção imediata do mundo e a visão sempre mediada da arte e do artista. O efeito desse movimento, como mostra Fabiana Camargo, é uma espécie de melancolia às avessas, na qual narradores enlutados aparecem como mediadores de um infinito processo de decifração de algo esquivo, que insiste em se subtrair ao escrutínio do olhar crítico, mas que, ao fazê-lo, afirma-se sempre com mais força. Atravessada pelo impulso simultaneamente vital e mortal do jogo, essa força se extravasa em forma poética autoconsciente: daí o uso insistente que faz Cortázar de experimentações metalinguísticas às quais correspondem diferentes técnicas da montagem cinematográfica. Recorrendo a elas, a montagem literária de Cortázar reproduz a ilusão de movimento do cinema e simultaneamente busca fixar em imagens poéticas o instante fugaz e sua ambígua duplicidade. Aqui, encontram-se, numa constelação complexa, a tradicional figura do duplo de derivação romântica, o gênero fantástico e seus desdobramentos vanguardistas (tão cinematográficos!). Nela explodem epifanias laicas dirigidas a um enigmático ponto de intersecção, o “ponto vélico”, metáfora náutica cortazariana que remete à arquetípica viagem de Ulisses, embutida no enredamento aludido nas “Tapeçarias infinitas” do título do livro. Além da investigação de contos e conhecidas adaptações fílmicas de narrativas cortazarianas, o leitor encontrará aqui também uma detida análise do filme “Mentiras piedosas” (2009), acompanhada de entrevista inédita com seu diretor, Diego Sabanés. Momento final iluminado e iluminador, em que o diálogo crítico presta mais um tributo à obra do escritor argentino.
[Susana Kampff Lages]