A “caçada” a um escritor, precisamente a Salman Rushdie, e a soltura de Nelson Mandela, depois de 27 anos na prisão, são o ponto de partida de Nadine Gordimer em Tempos de reflexão – de 1990 a 2008, segundo e último volume da coletânea que abrange mais de 40 anos de carreira da escritora sul-africana e que a Biblioteca Azul lança no Brasil. Não por acaso o livro começa com o tema liberdade, ou a falta dela – assunto no qual a escritora mantém constantemente seu foco de atenção. Diz Nadine: “Salman Rushdie não tem sido visto por... quanto tempo? Ele se tornou um dos Desaparecidos, como aqueles que sumiram durante um período recente na Argentina e aqueles que desaparecem sob o apartheid na África do Sul. Os governos repressivos têm o poder de destruir vidas nos seus países; quando as religiões adotam esses métodos, elas têm o poder de aterrorizar, por meio de seus fiéis, qualquer parte do mundo. O edito do falecido aiatolá tem jurisdição por toda parte, desdenhoso das leis de qualquer país. Os refugiados políticos dos regimes repressivos podem procurar asilo político noutro lugar; Salman Rushdie não tem para onde ir”.
Nadine é uma voz poderosa e arguta contra o papel do Estado, que, segundo ela, trata com pouco caso a cultura, os livros e os escritores: “[...] qual será a atitude oficial dos vários Estados africanos em relação à cultura e à literatura como expressão dessa cultura? Nós, escritores, não sabemos, e temos razão de estarmos inquietos. Sem dúvida, no século XX da luta política, o dinheiro do Estado tem sido gasto com armas, e não com livros; a literatura — na verdade, a cultura — tem sido relegada à categoria do dispensável. Quanto à capacidade de ler e escrever, desde que as pessoas saibam ler os decretos do Estado e os grafites que os desafiam, isso tem sido considerado proficiência suficiente”, escreveu.
De modo direto, e sem perder a esperança de transformações em seu país, Nadine, ganhadora do Nobel de Literatura em 1991, conta como viu os preparativos para a primeira eleição democrática não racial em 1994 e como o eleitorado foi sendo educado para exercer seus direitos. “Para nós, a eleição não significa apenas um novo começo. É uma ressurreição: esta terra levantando-se da tumba de todo o passado colonial partilhado em diferentes países [...]; este povo, levantando-se, pela primeira vez na história, com o direito de eleger um governo: para governar a si mesmos. Um momento sagrado é representado no ato de colocar uma marca no papel do voto.” Nadine termina o capítulo Renascendo para a eleição com um argumento sagaz: “A democracia não é uma questão intermitente; tem de ser aprendida dia a dia”.
Para além de seu posicionamento político e social, Nadine também é uma fã das artes. Ela diz que pertence “à primeira geração para a qual o cinema foi mais uma forma de arte”, junto com a literatura, a música, a escultura. E conta em Tempos de reflexão a saborosa história sobre o dia em que foi convidada a fazer parte do júri do Festival de Cannes, em 1995, e sobre os doze filmes que os integrantes tiveram de assistir, sob a presidência da atriz francesa Jeanne Moreau. A escritora afirma que aprendeu com “a troca de preocupações com os outros. Um diretor de fotografia lê a linguagem das imagens, enquanto eu recebo a linguagem do roteiro; um ator intui quando o desempenho trai ou transcende um papel, os diretores veem a estrutura e os produtores percebem a proporção entre a engenhosidade e a imaginação logradas e a pequena ou a grande quantidade de dinheiro gasto”.
Ainda no campo das artes, Nadine conta que o processo da escrita é algo que provoca muita curiosidade nas pessoas. Faz graça quando diz não ter a menor importância se o escritor senta-se ao meio-dia ou à meia-noite para dar conta de seu ofício, ou se ele está instalado em um quarto feito de cortiça, como Proust, ou em uma cabana, como Amós Oz, nos anos em que passou em um kibutz. E faz analogia: “A nossa é a mais solitária das ocupações. A única comparação que me ocorre é a de um zelador de farol. Mas a analogia não deve ir demasiado longe; não lançamos o raio de luz que salvará o indivíduo ou o mundo de se destroçar sobre as pedras”.
E a autora termina seu capítulo fazendo uma crítica àqueles que dizem que os escritores podem discorrer sobre muitos assuntos com entusiasmo. Não, diz Nadine, eles só podem escrever sobre aquilo que sabem, sobre aquilo que viveram, sobre os fatos que envolvem seus países. Lembra-se de que, na África do Sul, os escritores eram constantemente questionados sobre o que escrever depois do fim do apartheid. Diz ela: “O apartheid era um plano de engenharia social com suas leis; romances, histórias, poesia e peças teatrais eram uma exploração de como as pessoas pensavam e viviam, sua última humanidade fora do alcance da extinção. A vida não terminou com o apartheid”. E finaliza como quem sabe das coisas: “Os novos temas, alguns maravilhosos, outros desanimadores, mal tiveram tempo de nos escolher”.