TRECHO SUJEITO A NEBLINA

Seis narrativas em que a ficção e a memória se imbricam para contar histórias marcadas pelo acaso e pela incerteza, mas com rotas de fuga para aventuras do destino. O caminho nebuloso dos personagens pode ser reorientado a qualquer momento pelos sinais do percurso, do acaso e de desejos intempestivos. As personagens femininas de Leusa Araujo orientam as narrativas e tomam decisões que desnorteiam todos ao redor
No primeiro conto, “Perigo de correnteza”, um homem de idade tenta recompor as memórias de sua relação conjugal. Tempos e espaços se confundem nas recordações desse personagem que pensa na esposa ausente, no encontro romântico, na paixão da juventude e, por fim, na monotonia do casamento e na solidão. A prosa poética da autora explora a correnteza e as camadas do tempo, entre a sedimentação e a sobreposição.
Em “Área com desmoronamento”, uma professora oferece abrigo na edícula de seu sobrado a uma viúva despejada pela família do marido, morto subitamente. Mas é um novo inquilo, o irmão mais novo da professora, que irá transformar perigosamente a rotina da casa ao instalar ali uma empresa de manutenção de computadores.
Outra decisão imprevista de uma mulher organiza um dos contos mais alentados do volume. Em “Passagem obrigatória”, a mãe de Martim morre e, para contrariedade do filho, deixa parte da herança a pessoas que lhe foram caras: um imigrante boliviano, uma enfermeira, um vendedor ambulante do metrô. O testamenteiro revela-se antigo amante da falecida, o que de início perturba o jovem mas acaba por conquistar sua confiança. Aos poucos, Martim procura os herdeiros que a mãe elegeu. Em seu périplo, irá conhecer uma cidade de São Paulo marcada pela desigualdade e por pessoas contagiantes, além de uma história de protagonismo materno que ele desconhecia.
Outros dois títulos exploram os costumes contemporâneos e adentram, por meio da ficção, na crônica esportiva e literária.

Em “Curva acentuada à direita”, alguém interrompe a conferência de um poeta num auditório, com apupos e reparos à obra do palestrante. O conto que fecha o volume, “Prorrogação”, se passa num salão de beleza. Fazendo unha e lendo revistas de celebridades, a noiva de um famoso jogador de futebol repensa a decisão de casar.
O conto que dá título ao livro, “Trecho sujeito à neblina”, é o relato sobre a menina Brás, inspirada na bisavó da autora. O texto cobre mais de três décadas de história, desde 1900, no interior de São Paulo, região de Bragança, quando a bebê nasce em meio a uma epidemia de varíola, até o começo da década de 1930, por ocasião da morte do marido Augusto, quando Brás já é muher feita e mãe de cinco crianças. A história avança até a personagem complear 65 anos, morando na Parada Inglesa, capital paulista, e faz referência à decada de 1970. A história da família, nessas décadas, se confunde com o crescimento da cidade, as idas e vindas das lavouras de café, os surtos de malária, os empreendimentos farmacêuticos, as dívidas ligadas à terra, as aquisições e perdas de propriedades. A caracterização minuciosa da vida privada revela conexões profundas com a formação brasileira, e a herança colonial mostra persistência mais de meio século depois do fim da escravidão.

Os Títulos dos contos remetem às sinalizações de trânsito como metáforas para as surpresas do caminho, imperfeições da estrada e promessas renovadas de destino. A capa e as ilustrações de capa são de Sílvia Nastari. Texto de orelha da professora Viviana Bosi.