Qual é a lógica do funcionamento e do papel dos hospitais psiquiátricos nos dias atuais? A partir de reflexões que explicitam uma tática do abandono no funcionamento dessas instituições, o terapeuta ocupacional Fernando Kinker levanta importantes questões no âmbito da reforma psiquiátrica brasileira ao longo do livro. O título é oriundo da dissertação de mestrado defendida pelo autor, em 2007, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). A obra narra e analisa a experiência de uma intervenção federal em um hospital psiquiátrico - localizado numa cidade do interior do Nordeste - de péssimas condições. Em 2005, Kinker foi convidado pelo Ministério da Saúde para coordenar uma equipe de interventores nessa instituição, que já havia sido reprovada mais de uma vez nas avaliações anuais aplicadas nos hospitais psiquiátricos do Brasil. A proposta das intervenções foi liderada pela Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde e por pessoas dedicadas à reforma psiquiátrica. A localização exata e os nomes do hospital e dos personagens envolvidos foram omitidos da pesquisa e do livro, como forma de preservar a integridade daqueles que participaram do processo. Em quatro capítulos, Fernando Kinker conta como foi a vivência de transformação das condições do hospital, relatando algumas cenas que viveu com os internos e com os profissionais. O pesquisador narra também como se deu a construção de um conjunto de aliados, que contemplou artistas da cidade, universidades públicas, Igreja, imprensa, parlamentares e a prefeitura do município, envolvida desde o início no processo. "A experiência foi, de fato, reverberando pela cidade de forma que as pessoas pudessem rever seus valores e o significado daquela instituição", ressalta. Ao refletir sobre o lugar ocupado por esse modelo de instituição psiquiátrica na sociedade, Kinker destaca a existência de uma lógica do abandono. "Ao contrário do conjunto de comunidades terapêuticas religiosas que vêm sendo disseminadas no Brasil com forte financiamento público, e que carregam uma perspectiva moralizante, que lembra o início da psiquiatria, com o tratamento pela disciplina e pelo castigo, percebe-se, no âmbito do hospital psiquiátrico, que a tática que prevalece é a tática do abandono. Isso parece uma contradição, mas, de fato, se constitui numa tática de controle pelo abandono", explica o autor. Da realidade brutal a um espaço de vida e cuidado Ao relatar, nos primeiro, segundo e terceiro capítulos, etapas como o primeiro contato com o hospital, as ações de transformação, as novas experiências, o final da intervenção oficial, a mudança do grupo de profissionais que acompanhavam os usuários e os desdobramentos, o pesquisador faz uma série de reflexões que são, segundo o prefácio assinado por Pedro Gabriel Delgado, uma contribuição "valiosa e essencial" para a bibliografia da reforma psiquiátrica brasileira, especialmente no complexo processo de desinstitucionalização. Psiquiatra e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Delgado foi, durante uma década (2000-2010), coordenador nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde. No texto de quarta capa do livro, uma das participantes da equipe de intervenção, a médica Suzana Robortella, relembra o início do trabalho, repleto de enormes desafios, e as muitas mudanças ocorridas. "Assim foi o primeiro de muitos dias: o desafio de transformar aquela realidade brutal num espaço de vida e cuidado. Essa é a história que Fernando Kinker conta neste livro: da dor, do desespero, da morte, nasceu a força para mudar... A vida sempre vence!", enaltece a médica, mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).