O livro de estreia de Lívia Machado, Uma estrada toda sua, é uma vertigem. Diferentes imagens, situações e tramas se multiplicam e criam um universo povoado, intenso e poético. Lívia inventa mundos. Seus contos às vezes revisitam eventos a partir de um olhar singular, como um grupo de adolescentes em um sótão que especula sobre o futuro de uma época em que ovelhas eram clonadas e uma princesa morria em um túnel ou então a chegada da internet em uma cidade do interior de Minas Gerais “e sua grande orquestra sonora de conexão”. Também podem ser feitos de acontecimentos sobrepostos que embaralham nossa percepção do tempo e do espaço e produzem um choque feito de instabilidade e beleza, como um acidente de carro em uma estrada e a verdade vista nos olhos de uma vaca ou uma visita da morte que brinca com os gatos e uma estalactite que mora dentro de uma biblioteca. Outras vezes são frestas poéticas de delírio, como alguém que mergulha em um pote de geleia de mirtilo e conversa com um peixe ou memória que emociona por trazer de maneira particularíssima o universo da infância e suas lógicas próprias de entendimento e criação, como no relato de duas crianças que inventam um curso de voo ajudadas por uma galinha. E ainda, muitas vezes, são repletos de listas (nossa paixão em comum!), como a lista tocante, cômica e profunda, de jeitos de não morrer, na qual convivem itens como reagir a tigres, não usar sabonete íntimo e tomar cuidado com ventilador de teto ou então neste trecho de uma narradora que observa águas-vivas “no limite de seu tecido, que se dobra, contorce e desnuda a cada gesto de ir e vir. Uma degustação milimétrica do tempo: uma pele, um tapete, uma nuvem, respiro aparente, palavra camuflada. Como se isso assegurasse vida”. Todos esses acontecimentos fazem vacilar a realidade, e quando a leitura termina vislumbramos, com inquietude, quantas vidas podem caber dentro dessa. Isso já não seria pouco, mas sua escrita vai além e nos traz de volta algo valioso e que costumamos esquecer: a capacidade do espanto diante dos menores acontecimentos, e a de poder dançar no meio de uma turbulência. [Elisa Band]