O título "Uma garça no asfalto" remete ao tema das coisas “fora do lugar”. E ao absurdo que está na base de toda boa literatura.Neste livro sensível e certeiro de Clauder Arcanjo, reaparecem com força e plasticidade os seres socialmente invisíveis que Drummond soube tratar tão bem em suas crônicas e que já haviam marcado a literatura brasileira com as inesquecíveis figuras dos “retirantes” de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e também inspirou o chileno Gonzalez Vera a escrever a novela Vidas Mínimas (1923), na qual retrata a sua experiência de vida num cortiço de Santiago, o que nos remete a O Cortiço, de Aluízio de Azevedo. Dificilmente os “humilhados e ofendidos”, de que se ocupou o russo Dostoievski, encontrarão melhor tratamento, em língua portuguesa, do que nessas crônicas de Clauder Arcanjo, sepultando-se a ideia de que a crônica é um gênero literário menor. Da vida para a literatura, saltam tipos e figuras surpreendentes, como aquela jovem que, de joelhos, com a cabeça de encontro a uma cruz na beira da estrada, reza pela mãe morta. Ou a mãe e seu filho caídos na calçada da cidade grande, atrapalhando a passagem do Ano. Ou Antonio Francisco, de pequena estatura, “entroncado feito saco socado, mas ligeiro das pernas que só vendo”, que, apesar das pernas curtas, tornou-se o campeão das corridas de bicicleta, até que um dia foi atropelado e, com a mesma teimosia com que se tronou “atleta”, tornou-se poeta. Ou as duas velhas damas apaixonadas pelas letras, que “plantavam” (deixavam) jornais nos bancos das praças, a fim de que os jovens levassem e os lessem. Nessas e noutras situações, o leitor se deparará com um observador arguto e sonhador, que não admite que o cotidiano alienador vença a surda batalha que se trava em seu peito.