PREFÁCIO
Aqui é família, porra!
Por Paula Autran*.
Veraneio, uma casa à beira da praia, uma família classe média que se reencontra após dois anos sem se ver por conta do COVID-19. Aniversário da matriarca Laura, e também momento que ela considera perfeito para apresentar Rubinho, seu novo namorado a seus filhos, nora e netos. Um mote inicial perfeitamente comum e corriqueiro, não fosse escrito por Leonardo Cortez, dramaturgo cuja predileção é tirar o pó de debaixo do tapete das famílias e suas picuinhas tão insignificantes quanto gigantescas por levarem consigo os traumas, mal entendidos e recalques de todos nós. O que não foi dito, o que foi dito em demasia, o que ficou sem ser dito, a última briga do Natal passado por conta de um iogurte, a falta do pai, o excesso da mãe, as culpas e transgressões. E aquela a que tudo isso se dirige: a mãe.
Não uma mãe qualquer, arquetípica, edulcorada, a mãe de hoje em dia, ano 2023, século XXI, aquela que é também mulher, namorada, amante. E que sabe medir até mesmo a culpa que lhe cabe, e a que não cabe. E que a essa altura da vida, já com os filhos criados, tem a certeza de ter feito o que pôde, o que conseguiu, o que deu. E carrega a vontade de viver a velhice em sua plenitude, o que não conseguiu fazer ao lado do pai de seus filhos, um homem calado, com quem dividiu um apartamento frio e escuro por trinta anos. Sentimento que vem forte principalmente depois de um quase fim de mundo que foi a pandemia de COVID-19. Viúva, mãe de três filhos, no início da pandemia ela se isola na casa nova de praia da filha bem sucedida da família, Hercília Lima, a coach televisiva que acaba de estrear um programa novo, que de novo não tem nada, e ao qual ninguém da família assistiu e que é “acusada” durante toda a narrativa de ser rica.
“Você é rica, Hercília!”. O que poderia ser apenas uma blague do texto, traz embutido um certo aspecto sociológico, segundo o qual em toda família classe média parece haver um acordo tácito: aqui ninguém será bem sucedido e algumas vezes por ano vamos nos encontrar para chorar nossas mágoas e reiterar que nosso fracasso é culpa da família, esse outro de nós mesmos. Nelson Rodrigues já dizia que “uma hora toda família começa a apodrecer”. E é esse momento da família de Laura, que Leonardo capta em sua peça. Mas o faz ressaltando o lado tragicômico desse “apodrecimento”, no qual as entranhas de cada um dos personagens, e da família como um todo, ficam expostas ao público.
Assim, qualquer recorte que se faça na peça passa a ser um reflexo, um espelho para todas as famílias. A nora Andreia, que mesmo depois de décadas de casamento com Mário Sérgio, é sempre quase da família, Silvinho, o filho problemático e depressivo, sempre com um projeto que está quase para dar certo, e que pateticamente se compromete a filmar, em tempo real, as mazelas que a peça vai desvelando. Mário Sérgio, um prodígio da matemática, que se afunda em um casamento infeliz, um trabalho tacanho e em uma vida que, como a de todos os demais personagens, prometia bem mais. Em contraponto a tudo isso, Laura, a todo momento ressalta a luz, o mar, a beleza natural desse local no qual teoricamente todos deveriam se sentir bem.
Porém na peça de Leonardo nada é o que parece ser, e como na clássica tradição da boa comédia, os mal entendidos e as revelações vão se desdobrando ao longo da narrativa, e a plateia em um exercício bem vindo de inteligência e distanciamento crítico, tem que refazer rapidamente suas expectativas dramáticas e o que havia entendido até ali. “Ah! Então não era isso que eu esperava, é outra coisa”. Rubinho já entra sendo essa outra coisa desde o início, outra classe social, outra idade, outra forma de ver o mundo. Um outro estranho no ninho de uma família classe média que até esse dia foi pródiga em ocultar por baixo das boas maneiras dos cidadãos de bem, tudo o que não fosse de bom tom trazer a público.
Também, como na boa tradição da comédia crítica da década de 70, que um dos nossos grandes dramaturgos, Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, tão bem retratou em suas peças teatrais e séries televisivas como a A Grande Família Leonardo não fala apenas dessa família quando fala dessa família. Fala também das nossas mazelas políticas, da violência galopante, da histeria coletiva, da falta de empatia, da falta de solidariedade, e da decorrente violência que cresce de maneira assustadora em nossos dias. Qual a parte que nos cabe nesse cenário que vivemos? Ou será que é tudo culpa da nossa mãe? Ou do nosso vizinho violento? Ou do Rubinho, esse cara esquisito que entrou na nossa família recentemente? Talvez não sejamos mesmo capazes de responder a essas perguntas, mas se como dizia Lacan: “o inconsciente se estrutura enquanto linguagem”, essa peça já nos ajuda a elaborá-las, e entre risadas e surpresas é bem mais do que costumamos trazer para casa depois de um veraneio à beira mar.
*Paula Autran é pós-doutoranda em história da cultura na FFLCH/USP, Doutora e mestre em art